2. De Organizações e Movimentos
Sociais
As organizações sociais rurais
contemporâneas, que lideraram lutas de resistência política desde meados do
século XX, foram marcadas, desde seu inicio, pela ambigüidade. As duas mais
importantes organizações rurais dos anos 50 e 60 (Ligas Camponesas e Sistema
CONTAG) sofreram desta sina. As Ligas Camponesas nasceram como Sociedade
Agrícola de Plantadores e Pecuaristas de Pernambuco (SAPPP), mas logo foram
cunhadas pelos jornais locais com o nome das organizações rurais comunistas
criadas nos anos 50 na região de Ribeirão Preto (SP), para qualificá-las
ideologicamente (RICCI, 1999: 67). Logo em seguida, o deputado estadual
Francisco Julião criou um comitê de apoio envolvendo PTB, PST, UDN e PSB e se
tornaria sua principal liderança. Julião protagonizaria embates acirrados com a
direção do PCB sobre a condução das lutas no campo e acabaria por dirigir uma
radical inflexão de seu ideário, aproximando as Ligas das políticas castristas,
alinhando-as à Cuba.
A CONTAG teve sorte semelhante. Nascida
através da disputa e negociações de cúpula entre lideranças do PCB, lideranças
conservadoras da igreja católica e Ação Popular, a confederação foi criada em
1963, tendo como presidente Lindolfo Silva (um alfaiate carioca comunista que
desconhecia o cotidiano rural). O PCB, na época, dirigia 21 federações rurais
(de um total de 42 existentes). Após o golpe militar de 64, a CONTAG
será reconquistada por lideranças vinculadas ao PCB apenas no final da década de
60. E, novamente, emerge a ambigüidade cultural, já que a cúpula de esquerda do
sistema sindical rural define como estratégia política a orientação pela defesa
restrita da lei (lembremos que a legislação vigente era draconiana contra
qualquer mobilização social de massa) e estabelecimento de acordos entre
lideranças sindicais já estabelecidas (mesmo entre dirigentes muito
conservadores), compondo “laços de lealdade” no interior do sistema sindical.
Daí a emergência do que poderíamos denominar de “culto aos dirigentes”, como
administradores e representantes capacitados para liderar e monopolizar qualquer
demanda social rural.
No final dos anos 70 e inicio dos 80, esta
limitação do sistema de representação político-social do meio rural foi
duramente questionado por uma série de movimentos sociais que explodem nas
regiões e categorias sociais de fronteira, pouco ou nada assistidas pela
legislação ou estrutura sindical vigentes. Este é o caso da luta pela terra
(defendida pelo sistema contaguiano apenas nos limites do Estatuto da Terra, o
que excluía a luta de ribeirinhos, seringueiros, sem-terra e bóias-frias), lutas
de assalariados rurais temporários e tantos outros segmentos sociais.
Os movimentos sociais rurais dos anos 80
são, portanto, um campo de dupla resistência política, contra a ordem social que
os exclui e contra as organizações formais de representação social que não os
acolhe. A resistência, assim, é embalada por forte ressentimento, que busca
amparo na leitura da Bíblia, em especial, as passagens do Êxodo, que trata da
busca de um povo excluído e solitário por uma terra prometida pelo desejo
divino. O misticismo retorna como energia moral de segmentos sociais que se
sentem abandonados. Daí seu nítido caráter autônomo, frente aos partidos
políticos e estruturas formais de representação. Daí o discurso inundado de
simbologia, a natureza teleológica (quase proféticas) das palavras de ordem. Daí
a preferência por estruturas de organização horizontalizadas, o assembleísmo na tomada de decisões, a
forte desconfiança em relação às instituições públicas. Um ideário de
distanciamento do instituído e de crença num futuro utópico.
3.
De Movimentos Sociais à
Organizações
O ideário anti-institucionalista projetado
nos anos 80 consolidou uma forte articulação nacional de movimentos sociais e
organizações de apoio às lutas sociais rurais. Contudo, não conseguiu elaborar
uma nova institucionalidade ou mesmo políticas públicas mais adequadas aos seus
interesses. Permaneceram na resistência e na mobilização por pautas mais
imediatas. Mesmo algumas inovações implementadas a partir das novidades
instituídas pela Constituição de 1988 (mais especificamente os conselhos de
gestão pública gerados a partir do artigo 204), não conseguiram esgotar sua
possibilidade real de substituir a estrutura verticalizada e burocratizada de
gestão pública por estruturas mais horizontalizadas e colegiadas, como é o caso
dos Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural Sustentável (CMDRS). Com efeito, estudos de Marta Arretche (2000)
demonstram que persiste na cultura política nacional a dependência das ações
públicas em relação aos órgãos centrais de gestão. Este seria o caso das
políticas de descentralização ocorridas no país (merenda escolar, saúde,
assistência social, entre outras), que envolveram estados e municípios na medida
em que o órgão central gerava estímulos financeiros. Este foi o caso do CMDRS,
que em grande parte foram criados a partir do estimulo gerado pelos recursos
envolvendo o PRONAF (Programa Nacional de Apoio a Agricultura Familiar). Esta
situação parece estar sendo contornada por ações recentes do Ministério do
Desenvolvimento Agrário (MDA), que reformularam a política nacional de
assistência e extensão rural, aumentando o apoio e as ações de formação técnica
dos conselheiros rurais. Entretanto, a regra continuou sendo a dificuldade das
ações de resistência e luta por novos direitos superarem os limites das praticas
reivindicativas, construindo uma nova institucionalidade pública, uma nova
estrutura de poder e tomada de decisão pública.
As dificuldades para a superação do
caráter reivindicatório não estiveram vinculadas apenas à cultura ou ideário
político dos movimentos sociais, mas à uma conjunção de fatores: o avanço do
agronegócio em áreas tradicionalmente ocupadas pela agricultura familiar, o
envolvimento direto de assessores e lideranças de movimentos sociais em
administrações públicas progressistas, o aumento de disputa por recursos entre
movimentos e organizações populares. Assim, muitos movimentos sociais rurais se
institucionalizaram e assumiram nítidos sistemas de controle e hierarquia no seu
interior, transformando-os em organizações autoreferenciadas. Como organizações,
passaram a locomover-se num cenário de autopromoção, deixando de realizar cursos
e atividades de formação abertas, para limitá-las à formação de seus próprios
quadros, passaram a definir dirigentes autorizados a falar em oficialmente em
nome das organizações, criaram sistemas de divulgação de suas ações e captação
de recursos financeiros, e assim por diante. A própria filiação da CONTAG à CUT
gerou um declínio de todas formas de organização paralela à estrutura sindical
federativa que estava em curso até meados dos anos 90. Permaneceram algumas
experiências singulares e particularizadas, como as federações de agricultores
familiares, mas que não chegaram a alterar, de fato, a estrutura sindical
centralizada e pouco enraizada no cotidiano das lutas sociais no
campo.
Enfim, em grande parte, as experiências
inovadoras desencadeadas pelos movimentos sociais rurais dos anos 80 foram
catapultadas à esfera das ações governamentais. Tal constatação não se confunde,
é certo, com cooptação das experiências, mas com o que podemos denominar de
“estatalização” dos movimentos sociais: um tipo
especifico de parceria que tende a institucionalizar os movimentos sociais numa
dimensão extremamente formal e oficial. O que merece destaque é a relação
direta entre lideranças de movimentos sociais e governos (e nem tanto entre
movimentos sociais e Estado), consolidando uma relação política e não
necessariamente uma nova institucionalidade pública. Nesses termos, o PRONAF
parece ser a referência mais direta e exitosa desta nova relação política, o que
se distancia do caráter emancipatório dessas políticas e ações
governamentais.
Com efeito, estudo recente a respeito do
PRONAF (SCHNEIDER, 2004) revela a pujança e caráter inovador deste programa. O PRONAF adotou quatro objetivos
centrais: a) adequar políticas setoriais à realidade da agricultura familiar; b)
viabilizar infraestrutura para este segmento social; c) elevar o
profissionalismo dos agricultores familiares e; d) estimular o acesso aos
mercados de insumos e produtos, operacionalizados a partir do financiamento da
produção, financiamento da infraestrutura, formação de profissionais e
financiamento da pesquisa e extensão rural
(SCNEIDER, CAZELLA & MATTEI, 2004:24). Uma importante investigação
sobre o funcionamento de CMDRS do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Paraíba
(MARQUES, 2004: 54) indica algumas características desses organismos de gestão
pública:
a) A
paridade na sua composição, entre representantes das comunidades rurais e
agentes governamentais, parece provocar disparidades na capacidade de tomada de
decisões dos CMDRS. Enquanto os primeiros participam como voluntários, os
segundos possuem condições materiais (incluindo salário) que lhes confere
mobilidade;
b)
Não é freqüente, como seria adequado, que o presidente dos CMDRS sejam
eleitos por seus pares;
c)
Não existe uma concepção nítida do que seria a estrutura mais adequada de
participação das comunidades rurais nos CMDRS. Em alguns casos, técnicos da
EMATER (extensão rural) entrevistados consideram que um número elevado de
conselheiros e representantes de cada comunidade dificulta a agilidade das
decisões;
d) A
composição dos CMDRS não é uniforme ao longo do país. Contudo, a presença dos
Sindicatos de Trabalhadores Rurais (STR) e de associações de agricultores
familiares (ou suas comunidades), é uma constante. Em alguns casos,
representações do empresariado são incorporadas aos conselhos (caso mais
freqüente no Rio Grande do Sul), assim como igrejas (caso mais freqüente na
Paraíba). Há registros de embates sociais para ingresso nos conselhos, como
vários casos envolvendo assentados rurais;
e) Os
CMDRS valorizam o saber prático, o que questiona, muitas vezes, o saber técnico
da representação governamental (em especial, dos técnicos presentes). Os embates
de ordem cultural são constantes. Não é raro extensionistas rurais selecionarem
conteúdos e formulações dos conselhos do que consideram ilusório ou irrealista
(MARQUES, 2004: 69). O despreparo de agentes das Secretarias Municipais de
Agricultura ou descaso de prefeitos limitam, muitas vezes, a capacidade política
dos conselhos (contudo, no Rio Grande do Sul, 57% dos presidentes dos CMDRS são
secretários da agricultura; na Paraíba, há registros de ingerência direta do
Poder Público local na definição de representantes das comunidades rurais como
conselheiros).
Uma outra esfera de atuação governamental
– as políticas agrárias – não mereceu a mesma atenção e lógica adotada pelo
PRONAF. Ao contrário, desde os anos 80, a reforma agrária foi deslizando da
agenda oficial dos partidos e das preocupações centrais da agenda estatal.
Associou-se à histórica oposição do empresariado nacional a reelaboração teórica
promovida inicialmente por José Graziano da Silva (1985). De política estatal de
natureza distributiva que teria como função corrigir distorções na ocupação da
terra e natureza da estrutura produtiva rural, a reforma agrária passou a ser
considerada como política compensatória ou ação focalizada para debelar tensões
em áreas de conflito social. Ao longo dos anos 90, o novo contorno da política
agrícola foi se acentuando e descaracterizando os objetivos tradicionais da
reforma agrária. No governo Lula, a reforma agrária passou a ser substituída
pelo fomento ao desenvolvimento territorial. É fato que esta substituição é tema
de embate político no interior do governo, mas os agentes estatais que sustentam
a tradicional versão da política de reforma agrária são francamente minoria no
interior da gestão federal.
Uma última observação sobre as políticas
estatais para o meio rural e a relação com movimentos e organizações rurais diz
respeito à focalização de diversas iniciativas como é o caso da transposição do
Rio São Francisco. Tanto a
territorialização, quanto as demais ações governamentais voltadas para o fomento
à agricultura (em especial, a agricultura familiar), com exceção do PRONAF – já
comentado – possuem contornos das políticas focalizadas, não universais. Esta
parece ser uma lógica que mantém, de um lado, a redução das políticas públicas
para o setor à sua dimensão econômica; de outro lado, é possível, ainda, sugerir
referências à noção de formação de clusters. As duas hipóteses indicam, se
corretas, o caráter facilitador de realização do capital e dos investimentos no
setor.
É fato, contudo, que a focalização não se
tornou, até o momento, uma leitura governamental unificada, embora hegemônica,
dirigida pelos formuladores do Ministério da Fazenda.
Os movimentos sociais rurais, e mais
especificamente, as organizações rurais de trabalhadores e agricultura familiar,
têm neste enredo um dilema a ser superado: ou disputam programas marginais que
indicam mudança na lógica de fomento ao desenvolvimento da agricultura ou
aumentam o grau de mobilização social e pressão sobre as agências estatais. A
primeira opção foi, até o momento, a escolha, ainda que tímida, que grande parte
dessas organizações trilharam. Tal escolha, contudo, parece se esgotar
gradativamente
4. Da crise de paradigmas e de representações sociais
A historia recente dos movimentos sociais
rurais, como se percebe, é tortuosa e errática. Pareciam anunciar novas práticas
políticas e sociais nos anos 80, mas rapidamente tomaram novos rumos, se
institucionalizaram, alguns se partidarizaram, outros mantiveram o ideário
original (mas restrito à pequenos territórios de atuação) ou até mesmo
mantiveram ações inovadoras temáticas (como no caso de reassentamentos rurais de
populacões atingidas pela construção de hidrelétricas). Mas não conseguiram
produzir – nem prática, nem teoricamente – um esboço de nova institucionalidade
pública ou padrão de formulação ou controle social sobre políticas públicas do
setor, como era anunciado em diversos estudos elaborados ao longo dos anos 80 e
90.
Além do hibridismo (ou ambivalência) da
cultura política rural, outros fatores competem para a contenção ou inflexão dos
movimentos sociais rurais brasileiros. A mais instigante hipótese é a de crise
das estruturas de representação política no meio rural em virtude de mudanças
aceleradas das condições sociais e de trabalho no campo. A fragmentação social,
a mudança constante da paisagem rural, a crise das relações sociais
tradicionais, contribuem para uma constante tensão entre uma identidade
tradicional das populações rurais e um panorama inovador e volátil que conspira
contra as bases de seu imaginário. Num terreno social, ideológico e econômico
como este, as possibilidades e impactos sofridos pelas populações rurais gera o
que podemos denominar de “tendência à dissocialização”, para utilizarmos termo
sugerido recentemente por Touraine (1999).
É importante ressaltar que toda
representação social é mutável, se
inscrevem nos quadros de pensamento preexistentes e enveredam por uma moral
social (JODELET, 2001: 20), não raro acolhendo várias representações de
natureza distinta que acabam por criar novos elementos morais, dando lugar a
teorias espontâneas. Em suma, as representações incorporam diversos elementos da
vida cotidiana (informativos, cognitivos, ideológicos, normativos, crenças,
valores, atitudes, opiniões, imagens), num mosaico de informações que constituem
um tipo de bricolage, o que confere o
deslocamento de certezas e verdades sociais, alterando o sentimento de pertença
social e o julgamento das experiências cotidianas. As representações sociais,
enfim, articulam conteúdos e processos. No caso em estudo, as comunidades rurais
vivenciam um momento de “deslocamento de representações” em virtude da
flexibilidade da ordem social contemporânea. Nada mais natural, portanto, que
sugerirmos um importante momento de crise de representação social.
A cultura comunitária, enfim, não consegue
impor-se como alternativa à constante ruptura social e de expectativas futuras.
Enquanto tendência, contudo, pode gerar inovações. Mas, para tanto, as
populações rurais terão que atualizar a trincheira aberta nos anos 80, de
formação de uma forte identidade e valorização das populações rurais, de
compreensão do seu isolamento frente às opções governamentais e de construção
efetiva de uma nova institucionalidade pública, que considere seu ideário e
imaginário social e suas formas de reprodução social. A capacidade de formulação
de políticas públicas e controle social rural era, e se mantém, como
possibilidade afirmativa do mundo rural tal como elaborado pelos movimentos
sociais rurais dos anos 80. Para além do Estado ou para transformá-lo
radicalmente.
Por: RUDÁ RICCI
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