quinta-feira, 28 de novembro de 2019

A QUESTÃO DO TRABALHO NO BRASIL



O trabalho escravo predominou no Brasil por mais de 350 anos, sendo abolido apenas no final do século XIX. Portanto, convivemos com a liberdade formal de trabalho há pouco mais de cem anos, e o peso de um período tão longo de escravidão ainda se faz sentir em nossa sociedade.
            As primeiras experiências de utilização da força de trabalho legalmente livre e estrangeira foram realizadas a partir de 1846, quando um fazendeiro do oeste paulista importou colonos da Suíça e da Alemanha com a ajuda financeira do governo da província de São Paulo. O sistema de trabalho adotado ficou conhecido como colonato.
            Nesse sistema, os colonos plantavam um número determinado de pés de café, cuidavam deles e, no final da colheita, dividiam com o proprietário os ganhos obtidos. Com esses ganhos, deviam ir quitando o adiantamento recebido para o transporte e os gastos de sua instalação e sobrevivência. No entanto, o lucro com o café era sempre menor que o adiantamento, sobre o qual ainda recaíam juros. Enquanto não saldassem a dívida, o que era praticamente impossível, os colonos não podiam sair da fazenda.
            Tais condições revoltavam os imigrantes e geravam protestos dos governantes de seus países de origem. Assim, com o insucesso dessas experiências iniciais, a chegada de imigrantes ao Brasil ficou estagnada até ser retomada em 1880.
            De 1891 a 1900, emigraram para o Brasil mais de 1 milhão de pessoas. Nos trinta anos seguintes, esse movimento prosseguiu, com uma média de 1 milhão de pessoas a cada dez anos.
            A maioria dos imigrantes foi para o campo, mas muitos se estabeleceram em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, onde trabalhavam nas indústrias nascentes, no pequeno comércio ou como vendedores ambulantes.
            A partir do início do século XX, diante das condições de vida e de trabalho extremamente precárias, os trabalhadores iniciaram vários movimentos para mudar essa situação. Apoiados por uma imprensa operária passaram a organizar movimentos grevistas, que culminaram com a greve de 1917, em São Paulo.
            Os movimentos operários foram reprimidos e tratados como caso de polícia. Na década de 19030, com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, as atividades trabalhistas no Brasil foram regulamentadas. Nesse período, o governo buscou incentivar e ampliar o processo de industrialização no Brasil, o que significou um aumento do número de trabalhadores urbanos.
A SITUAÇÃO DO TRABALHO NOS ÚLTIMOS 70 ANOS
            A partir de 1960, a situação do trabalho no Brasil foi muito alterada com o fenômeno da intensa urbanização. Entre 1940 e 2010, a população rural foi reduzida de 68,77% para 15,64% e a população urbana passou de 31,23% para 84,36%.
            A concentração urbana nas capitais formou densas áreas metropolitanas, onde atualmente vivem mais de 45% de toda a população brasileira.
            Muitos trabalhadores estão no setor informal, que inclui empregados de pequenas empresas sem registro, indivíduos que desenvolvem prestação de serviços pessoais e de entrega, comércio ambulante, execução de reparos etc. segundo a Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD) realizada em 2011, 74,6% dos 92,5 milhões de indivíduos ocupados tinham carteira de trabalho assinada.
            Há ainda registro de trabalho escravo em algumas regiões do Brasil, mantido por conta do aliciamento com falsas promessas de empreiteiros a desempregados, da criação de esquemas de dívidas cumulativas e impagáveis do trabalhador para com o empregador e da violência em regime quase prisional no local de trabalho e de moradia. Ao estudar essa forma de trabalho servil, o antropólogo Ricardo Resende Figueira a chamou de “escravidão por dívida”.
            A expansão da mecanização e da automação – na agricultura, na indústria, nos serviços – também causou impacto no mercado de trabalho, e o desemprego permanece como um problema que requer atenção.
            Um dos grandes desafios para este século será a efetivação de um sistema eficiente de proteção e assistência ao trabalhador, preparando os jovens para as novas qualificações e investindo em novas fontes de emprego.






quarta-feira, 27 de novembro de 2019

O TRABALHO NA SOCIEDADE MODERNA


Entre as principais características das sociedades modernas, encontram-se a crescente divisão do trabalho, o aperfeiçoamento contínuo dos sistemas produtivos e a flexibilização e a mobilidade dos mercados de trabalho.

A DIVISÃO DO TRABALHO

            O pensamento de dois autores clássicos, Karl Marx e Émile Durkheim, marca ainda hoje perspectivas distintas sobre a divisão do trabalho nas sociedades modernas.
            Para Marx, a divisão social do trabalho, realizada no processo de desenvolvimento das sociedades, gera a divisão em classes.
            Nas sociedades modernas, com o surgimento das fábricas, duas classes foram definidas pela divisão social do trabalho: a dos proprietários das máquinas e a de seus operadores.
            Subordinado à máquina e ao proprietário dela, o trabalhador só tem, segundo Marx, sua força para vender. Ao pagar por essa força de trabalho, o capitalista passa a ter o direito de utilizá-la no interior da fábrica.
            O operário trabalha mais horas por dia do que o necessário para produzir o referente ao valor do seu salário. O que ele produz nessas horas a mais é o que Marx chama de mais-valia. O valor das horas trabalhadas e não pagas é acumulado e replicado na produção, o que enriquece o capitalista. Esse processo é denominado acumulação de capital.
            Os conflitos entre os capitalistas e os operários aparecem quando estes verificam que trabalham muito e estão cada dia mais miseráveis. Diversos tipos de enfrentamento marcaram, assim, o desenvolvimento do capitalismo.
            Para Durkheim, a crescente especialização do trabalho promovida pela produção industrial moderna trouxe uma forma superior de solidariedade, não de conflito.
            O autor concebe duas formas de solidariedade:
·        Solidariedade mecânica: o que une as pessoas não é o fato de uma depender do trabalho da outra, mas a aceitação de um conjunto de crenças, tradicionais e costumes comuns;
·         Solidariedade orgânica: o que une as pessoas é a necessidade que uma tem da outra, em virtude da divisão do trabalho social.
A interdependência provocada pela crescente divisão do trabalho cria solidariedade, pois faz a sociedade funcionar e lhe dá coesão.
Se a divisão do trabalho não produz a solidariedade, é porque as relações entre os diversos setores da sociedade não são regulamentadas pelas instituições existentes.
As análises das relações de trabalho na sociedade moderna capitalista influenciaram mudanças na organização do sistema produtivo a partir do início do século XX.

O APERFEIÇOAMENTO DOS SISTEMAS PRODUTIVOS

            Ainda no final do século XIX, Frederick Taylor (1865-1915) propunha a aplicação de princípios científicos na organização do trabalho, buscando maior racionalização do processo produtivo. Já no século XX, Henry Ford (1863-1947) introduziu em sua fábrica nos Estados Unidos uma forma bem detalhada e encadeada de divisão de tarefas, visando à produção em série de um produto para o consumo em massa, o automóvel Ford modelo T.
            Com as mudanças introduzidas por Ford, as expressões fordismo e taylorismo passaram a ser usadas para identificar um mesmo processo:
·         Uso mais racional das horas trabalhadas;
·         Aumento da produtividade com o controle das atividades dos trabalhadores;
·         Divisão e parcelamento das tarefas;
·         Mecanização de parte das atividades;
·         Introdução da linha de montagem;
·         Sistema de recompensas e punições conforme o comportamento dos operários na fábrica.
Esse processo deu início ao que veio a se chamar era do consumismo: produção e consumo em larga escala.
Com Ford e Taylor, a divisão do trabalho passou a ter planejamento vindo de cima, que não levava em conta os operários. Para corrigir isso e evitar conflitos, a partir de 1930, Elton Mayo (1880-1949) buscou medidas que promovessem o equilíbrio e a colaboração no interior das empresas.
A visão de Taylor, a de Ford e a de Mayo revelam a influência das formulações de Durkheim, que afirmou haver uma consciência coletiva que define as ações individuais, submetendo todos à ordem estabelecida. As empresas devem dar continuidade a isso, definindo o luar e as atividades de cada um.
O sociólogo estadunidense Harry Braverman (1920-1976) foi um crítico dessa visão. Para ele, o taylorismo tirava do trabalhador o último resquício de saber sobre a produção: a capacidade de operar uma máquina, restando-lhe submeter-se ao administrador. Estava concluída a expropriação em todos os níveis da autonomia dos trabalhadores.
A crítica marxista destaca que as formas de regulamentação da força de trabalho propostas por Mayo seriam indiretas, pela manipulação do operário por meio de especialistas em resolver conflitos. Com esses procedimentos o fordismo-taylorismo penetrou em todas as organizações sociais. Essa forma de organizar o trabalho foi marcante até a década de 1970 e ainda prevalece em muitos locais.

FLEXIBILIZAÇÃO E MOBILIDADE

            Novas transformações aconteceram na sociedade capitalista, principalmente depois da década de 1970, e todas visam à busca por mais lucro. Destaca-se, entre essas transformações, a flexibilização do trabalho e do mercado.
            Há duas formas de flexibilização próprias desse processo:
·         Flexibilização dos processos de trabalho e de produção: automação e consequente eliminação do controle manual por parte do trabalhador;
·         Flexibilização e mobilidade dos mercados de trabalho: os empregadores passam a utilizar as mais diferentes formas de trabalho, substituindo a forma clássica do emprego regular, sob contrato.

A SOCIEDADE SALARIAL ESTÁ NO FIM?

            O trabalho fixo, sem mudança de emprego até a aposentadoria, está desaparecendo. O sociólogo Robert Castel (1933-2013) constatou que há uma nova sociedade na qual o trabalho e a previdência já não significam segurança, o que causa transtornos sociais e individuais. Ele sintetizou essa situação em quatro pontos:
·         A desestabilização dos estáveis;
·         A precariedade do trabalho;
·         O déficit de postos de trabalho;
·         O desajuste entre qualificação e emprego.
Como o trabalho é uma espécie de passaporte para a integração do indivíduo na sociedade, o resultado é uma desqualificação do ponto de vista da cidadania, com consequente perda de identidade.


segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Como o futebol explica o mundo



Muito além de 22 marmanjos correndo atrás de uma bola. O esporte mais popular do planeta é também reflexo da sociedade em que vivemos
                                            Por Sérgio Gwercman
O Brasil foi jogar bola no Haiti e isso não teve nada a ver com preparação para a próxima Copa. Quem estava em campo era a diplomacia. Para comprovar, basta ver a cobertura da televisão: em vez da Fifa, era a ONU que aparecia nas imagens. No lugar do centroavante, era o presidente do país que atraía a atenção dos repórteres. Não foi a primeira nem será a última vez que futebol e política se misturaram.
É por causa dessa proximidade que alguns estudiosos olham para o gramado e enxergam um retrato perfeito da sociedade. A bola está na moda entre os analistas políticos.
Se você nunca tinha pensado que 22 jogadores em campo podem resumir o mundo, deve estar com uma dúvida: por que justamente o futebol, e não o cinema ou a literatura? "A arte sempre será produto da imaginação de uma pessoa. O futebol é parte da comunidade, da economia, da estrutura política. É um microcosmo singular", diz o jornalista americano Franklin Foer, autor de How Soccer Explains the World ("Como o Futebol Explica o Mundo", sem tradução para o português). Não apenas singular, mas global. É o esporte mais popular do planeta. Uma fama, aliás, que tem razões pouco esportivas. "O futebol nasceu na Inglaterra numa época em que os ingleses tinham um império e viajavam por muitos países. Ferroviários levaram a bola para a América do Sul, petroleiros para o Oriente Médio", afirma Foer.
Mas não vá confundir o papel do esporte. Ele faz entender, mas não muda o mundo. "Não se trata de uma força revolucionária capaz de transformar uma nação. É apenas um enorme espelho que reflete a sociedade em que vivemos", diz Simon Kuper, autor de Football against the Enemy ("Futebol contra o Inimigo", sem versão brasileira). A bola está em jogo: nas próximas páginas, você vai ver como o futebol explica...

A Reforma protestante
Na Escócia, quando Glasgow Rangers e Celtic se enfrentam, estão dando continuidade a uma rivalidade que começou antes de o futebol existir. Mais exatamente no século 16, quando a Reforma protestante varreu o país matando católicos. Muitos morreram. Os que sobraram passaram o tempo acalentando a fidelidade ao papa, o sonho de independência e, mais tarde, o amor ao Celtic. Do outro lado da cidade, os protestantes se aliaram à monarquia inglesa e fundaram o Rangers - em que, até 1989, católico nenhum podia entrar.
Se rivalidade pode ser medida, Rangers e Celtic fazem o clássico de maior rivalidade do mundo. O ódio mortal desafia todos os intelectuais que afirmam que a civilização aplaca a barbárie e dissemina a tolerância. Glasgow é uma cidade rica, culturalmente criativa, politicamente liberal. E mesmo assim algumas de suas figuras mais proeminentes são capazes de ir ao estádio cantar hinos como "estamos mergulhados até o joelho em seu sangue".
Católicos e protestantes se matando parece coisa da Irlanda do Norte, você deve pensar. Acontece que por lá não há mais espaço para esse tipo de convivência. O católico Belfast Celtic fechou suas portas em 1949, após uma partida em que a briga das arquibancadas chegou ao gramado e jogadores foram espancados. Com a ajuda da polícia. Pela paz da nação, deixaram o futebol de lado.

A guerra da Iugoslávia
Quando o juiz apitou o início de Dínamo Zagreb versus Estrela Vermelha, em 1990, começou uma guerra sangrenta. Naquele dia, a união de repúblicas que formava a Iugoslávia foi sepultada.
O visitante Estrela Vermelha vinha de Belgrado, na Sérvia, capital iugoslava. O Dínamo era de Zagreb, da separatista Croácia. E os torcedores estavam lá para protestar: o estádio se transformara num caldeirão nacionalista. Quando a briga começou, um helicóptero teve de resgatar do campo os jogadores do Estrela Vermelha. Os croatas haviam estocado pedras para o ataque. As grades que separavam as torcidas desapareceram - foram dissolvidas com ácido. Os sérvios não recuaram. Pela primeira vez em 50 anos a Iugoslávia vivia um confronto étnico. Para os que defendiam um conflito armado, era a gota d'água.
Futebol e guerra não se separariam mais. E no centro desse casamento estava o Estrela Vermelha. O chefe das torcidas organizadas era um sujeito conhecido como Arkan, que mais tarde seria apontado como um dos maiores criminosos de guerra da Iugoslávia. Arkan recrutava torcedores mais violentos para atuar como paramilitares na Bósnia - entre os atrativos, ele oferecia visitas de jogadores do Estrela Vermelha para combatentes feridos. Estima-se que esses torcedores-soldados tenham matado cerca de 2 mil pessoas. A maioria civis. Quase todos com requintes de crueldade.

O Irã

Não há solo tão fértil para o florescimento de teorias conspiratórias como o do Oriente Médio. Uma delas diz que o governo do Irã sabota a seleção de futebol. Faltam evidências para acreditar na tese. Mas que os chefes muçulmanos torcem contra, isso eles torcem. E com motivo.
A rixa começou quando o regime do xá Reza Pahlevi fez do esporte um sinônimo de modernidade. Mesquitas eram confiscadas e davam lugar a campinhos. O xá era fanático pelo Taj, de Teerã. Sua esposa, pelo rival Persépolis.
Ao tomarem o poder, em 1979, fundamentalistas tentaram cooptar o esporte, cercando o campo com placas "publicitárias" anti-Israel e Estados Unidos. Não deu certo, e o futebol tornou-se símbolo da resistência. "No estádio você pode gritar contra o regime. É o único lugar livre. Focos oposicionistas nascem lá", diz Simon Kuper. Jovens tomam a arquibancada para pedir reformas. Pior: atletas como Beckham, cabeludo, tatuado e mulherengo, vendem um estilo de vida que influencia adolescentes e assombra religiosos. Pior ainda: se a seleção vai bem, a euforia toma conta do país e faz até as mulheres exigirem participar da festa, aos gritos de "não fazemos parte desse país?". É muita subversão para um aiatolá só.

Collor e Lazzaroni
O técnico Sebastião Lazzaroni e o presidente Fernando Collor têm em comum mais do que terem sido escorraçados de seus cargos. Talvez você tenha esquecido, mas o Brasil foi eliminado da Copa sob a tutela de Lazzaroni, em 1990. Mesmo ano em que Collor assumiu a Presidência. Além de contemporâneos, eles foram ícones de uma onda que varreu o país na virada da década: a febre dos importados.
Era uma fase em que idolatrávamos o que vinha de fora - a solução dos problemas estava no exterior. Convenhamos que motivos existiam: com o mercado fechado aos importados, a indústria estava obsoleta e pouco competitiva. A seleção, por sua vez, completava 20 anos de murros em ponta de faca. Tudo que o estilo "futebol-arte" nos rendera tinha sido uma coleção de frustrações em Copas.
Collor e Lazzaroni bancaram o risco. Enquanto o presidente prometia revolucionar a economia com tecnologia estrangeira, o treinador se inspirou numa tática européia, colocou um líbero em campo e a seleção jogou na retranca. "Essa modernização pretendia transformar o Brasil numa espécie de Alemanha", escreveu Kuper. Não foi à toa que o treinador virou motivo de chacota. Economia germânica era um belo objetivo. Mas espelhar-se no futebol alemão não dá para desculpar.

Os comunistas
Como quase tudo no mundo comunista, o futebol soviético era infestado pela burocracia. A cada clube correspondia uma parte do poder: o CSKA pertencia ao Exército, o Dínamo Moscou à KGB, o Lokomotiv, adivinhem, era dos ferroviários. Só o Spartak Moscou não era de ninguém. Quer dizer, pertencia a um louco chamado Nikolai Starostin, que por conta da ousadia de possuir um time foi defenestrado para a Sibéria.
Na ditadura soviética, torcer era um ato político. Foi nos estádios, durante jogos do Yerevan Ararat ou do Dínamo Tblisi, que países como Armênia e Geórgia começaram suas lutas pela independência. Starostin, no entanto, fundou seu time não para bajular oficiais do governo, mas para agradar fãs de futebol. A massa adorou. O governo nem tanto. Quando o Spartak foi bicampeão em 1938 e 1939, deram um jeito de condenar o cartola a dez anos no gulag stalinista - onde, ironicamente, era disputado pelos chefes dos campos para ser técnico do time. Enquanto isso, na capital, o regime iniciou seu expurgo da história. O rosto e o nome de Starostin sumiram de fotos e registros oficiais. O tratamento clássico destinado aos inimigos do comunismo.
Na Alemanha Oriental, o queridinho do governo era o Dínamo, de Berlim. Assim como grande parte dos clubes de mesmo nome na Cortina de Ferro, o Dínamo era o time da polícia secreta. Não é surpresa, portanto, que tenha ganhado dez títulos nacionais seguidos nos anos 70 e 80. "Nos regimes comunistas, todo dinheiro ia para a capital. E essa política incluía também o futebol", diz Simon Kuper. O clube vivia um paradoxo: provavelmente era ao mesmo tempo o clube mais vitorioso e o mais odiado do mundo. Quando não estava dando pitacos no time, sua diretoria se reunia na cúpula da Stasi, como era conhecida a brutal polícia secreta alemã. Sendo assim, berlinense que gostava de futebol odiava o Dínamo e sonhava em reencontrar o Hertha Berlim, o time que ficara do lado ocidental da cidade quando o muro foi erguido. No primeiro jogo após a unificação da Alemanha, o estádio do Hertha recebeu 59 mil torcedores - num jogo da segunda divisão. Então os alto-falantes agradeceram a presença do corpo de diretores do Dínamo Berlim. Houve revolta nas arquibancadas. No jogo seguinte, o público pagante não passou de 16 mil pessoas.

Hooligans e a globalização
Os leitores mais antigos deverão se lembrar do Chelsea como o clube da torcida mais violenta do mundo. Seus seguidores eram os hooligans dos hooligans - tatuados, bêbados e brigões. Para os mais jovens, o Chelsea é um clube moderninho. O primeiro a escalar 11 gringos num jogo do campeonato inglês. E o primeiro a ter como dono um russo magnata do petróleo. "Mais que qualquer outro clube no mundo, o Chelsea foi transformado pela globalização", diz Franklin Foer.
O problema é que os antigos hooligans parecem perdidos nesse novo mundo de mauricinhos. Ok, estão felizes com o time disputando títulos. Mas vivem protestando com saudades dos "bons e velhos tempos". E, ironia, fazem isso no melhor estilo da economia de mercado: ao redor do estádio surgiu uma indústria de relíquias dos dias "em que o futebol inglês era jogado por ingleses, os torcedores eram iguais e os ingressos eram baratos". Só esquecem que naquela época o time estava na segunda divisão e falido. "Mitificar o passado, mesmo quando ele merece ser esquecido, é típico da globalização", diz Foer. Não é fácil a vida de um hooligan decadente: quanto mais eles rezam, mais vêem globalização.

Madri e Barcelona
Endereço do Real Madrid: avenida Castellana, mais conhecida como antiga avenida Generalíssimo Franco. Pronto. Para os torcedores do Barcelona, a polêmica acaba aí: está provado que o Real é, foi e sempre será o time do poder. Tanto que construiu seu estádio na rua que homenageia o maior ditador espanhol. E a consequência é óbvia: seu principal rival no futebol, o Barcelona, é, foi e sempre será vítima do poder.
Madri é o centro do governo. Barcelona, capital da Catalunha, uma eterna rebelde reivindicando autonomia. A bola não poderia ficar fora da disputa. Oprimidos pela ditadura franquista, que proibiu o uso do idioma e dos símbolos "nacionais", os catalães fizeram do time do Barcelona seu partido político. O fanatismo do próprio Franco pelo Real só ajudou a acirrar os ânimos.
A briga é digna de Atenas versus Esparta. Catalães gostam de se enxergar como cosmopolitas, industriais e amantes da cultura - de lá saíram artistas como Gaudí e Miró. E descrevem seus rivais como um bando de tacanhos e rurais. Para eles, o reflexo dessas diferenças está no gramado. O Real tem futebol burocrático; o Barça, com holandeses e brasileiros no elenco, joga alegre.

Os pigmeus e o fim do apartheid
O futebol era o esporte mais popular entre os negros da África do Sul. Mas, como tudo que acontecia durante o apartheid, os brancos preferiam ter um campeonato só deles - mesmo sendo muito mais pernetas. No gramado, nas arquibancadas, nos clubes sul-africanos, todos tinham a mesma cor de pele.
A preferência monocromática começou a mudar em 1977, quando Saul Sacks, presidente do time de brancos Arcadia Shepherds, resolveu escalar o negro Vincent Julius no ataque do time. Foi uma surpresa - o presidente da federação só ficou sabendo do plano meia hora antes da estreia. Vinte minutos mais tarde, Sacks entrou no vestiário. "Este é Vincent Julius. Ele vai jogar de centroavante hoje", anunciou aos atletas. Prometia ser um baita escândalo. Não foi. Sacks, meio sem querer, havia captado uma nova atmosfera no país. E ouviu do ministro dos Esportes um conselho que parecia impensável. "Una-se aos negros. É esse o futuro do país."
Não foi a única vez que o futebol refletiu o início de mudanças naquela sociedade. Na década de 80, quando a lei ainda separava a população pela cor da pele, já existia uma liga de futebol mista. E, quando o apartheid acabou, a nova seleção, formada por brancos e negros, passou ser o reflexo da unificação do país. "O futebol virou o símbolo de uma África do Sul em que toda a população estava novamente reunida", diz Simon Kuper.
Ainda na África: Roger Milla, o camaronês que brilhou na Copa de 1990 (aquela em que Camarões venceu a Argentina na inesquecível abertura do torneio), era um jogador fracassado que foi convocado para a seleção graças a sua amizade com o presidente do país. Após a competição, ele encerrou a carreira e virou um fracassado com emprego público. Uma de suas principais iniciativas foi organizar um torneio de futebol entre pigmeus para "levantar recurso para saúde e educação". Quando chegaram à capital, os pigmeus foram aprisionados e mal alimentados. "Eles jogam melhor se comerem pouco", explicou um dos responsáveis pelo torneio. Bilheteria do jogo: 50 ingressos vendidos. E o público passou a maior parte do tempo xingando os pigmeus.