Impeachment relâmpago do presidente Fernando Lugo tira o Paraguai do esquecimento internacional. A crise política é resultado de uma longa história de furos na democracia e de enriquecimento da elite às custas da população
Ele não é litorâneo, nem andino; e está acostumado ao ostracismo internacional desde os tempos da colonização, quando os esforços europeus se dirigiram aos metais preciosos, às produções agrícolas e às cidades de porto. Hoje, o Paraguai está no centro das discussões políticas latino-americanas. Não pelo sucesso, mas pela crise: o impeachment relâmpago do presidente Fernando Lugo, na última sexta-feira (22), e a ascensão ao poder do vice, Frederico Franco (que já foi presidente em outra ocasião), gerou muita desconfiança dos países membros do Mercosul, que o isolaram economicamente. O país agora está num cerco que remete àquele feito há mais de cem anos, na Guerra do Paraguai [veja o artigo de Leslie Bethel, Todos contra o Paraguai]. Para se entender a cena social, política e econômica de hoje, precisa-se voltar um pouco no tempo.
A Guerra do Paraguai – ou contra o Paraguai – aconteceu na segunda metade do século XIX e constituiu-se na maior guerra da história da América do Sul, com violência e extensão assustadoras para os padrões da época. Após cinco anos de lutas o Paraguai passou à periferia da América a quem temos dedicado incansável esquecimento. Em 1894, por exemplo, Machado de Assis ironicamente perguntava em uma de suas crônicas: “A comissão uruguaia está trazendo medalhas comemorativas da campanha do Paraguai, não sendo propriamente antiga, fala de coisas velhas aos moços. Campanha do Paraguai! Mas então, houve alguma campanha do Paraguai? Onde fica o Paraguai?”. Com a economia devastada – sem recursos ou empréstimos para reequipamento – e com subnutrição e epidemias de todo tipo, o Paraguai tornara-se um país de sobreviventes, sobretudo indígenas, “bárbaros” confusos e dispersos em seu próprio território.
Fernando Lugo em discurso após o impeachment
O Paraguai de Stroessner
As relações com o Brasil só tornariam ao centro das discussões no contexto dos esforços paraguaios de integração regional e mundial iniciados nos anos de 1960, que tiveram como marco a construção da hidrelétrica de Itaipu, no rio Paraná. À época, estava no poder o general Alfredo Stroessner, que governou durante 35 anos (1954 a 1989) após um golpe de Estado. Stroessner poderia muito bem ter seu governo comparado ao dos ditadores africanos que enriqueceram, assim como seus partidários, à custa do empobrecimento e sacrifício da maior parte da população. Ambicioso, o projeto de construção da usina hidrelétrica de Itaipu gerou algumas fortunas aos companheiros do general e tornou mais dócil o até então imprevisível exército.
O Paraguai hoje
Desigualdade social e fundiária, baixo grau de acesso à educação e saúde de qualidade, altos índices de corrupção política e econômica, e mão de obra vendida a preço vil. Foi este quadro tão perverso quanto comum nos países latino americanos, que Fernando Lugo se comprometeu a romper durante a campanha presidencial de 2008. Bispo católico com algumas denúncias de paternidade no currículo e experiência política reduzida à militância junto aos movimentos sociais na diocese de San Pedro, uma das regiões mais pobres do país, Lugo tornou-se chefe do executivo paraguaio prometendo viabilizar reforma agrária "projetada e negociada com todos os atores envolvidos, sem processos traumáticos nem violentos".
“Como sempre atuei no marco da lei, embora essa lei tenha sido torcida como um frágil ramo ao vento, me submeto à decisão do Congresso e estou disposto a responder sempre por meus atos como ex-mandatário nacional”. A declaração de Lugo ao deixar a presidência do Paraguai invoca a legalidade como estratégia de defesa e justificativa, recurso comum entre direitas e esquerdas latino-americanas. Em 1964, no Brasil, o presidente João Goulart e seu governo trabalhista foram golpeados por ação civil-militar que deu início a uma longa ditadura. Também estavam em pauta projetos de reforma agrária, redistribuição de renda e a salvaguarda da legalidade constitucional defendida como projeto e desprezada como processo.
Talvez seja o momento de mudarmos o discurso e repensarmos uma das questões fundamentais do pensamento político moderno: a raiz e a fortaleza da democracia, a soberania popular. Ao bom investigador não faltam indícios das fragilidades jurídicas da sociedade e de sua ineficiência no exercício pleno da soberania popular. Sinais de que nos meandros das crises podemos encontrar o caminho para a modernização não mais das instituições, da técnica e dos procedimentos, mas do significado da política e do espírito democrático.
Por: Nashla Dahas
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