terça-feira, 26 de junho de 2012

A primeira Primavera Árabe



Filmado na década de 1960, Lawrence na Arábia dramatiza a história de um oficial britânico que lutou com os árabes durante a Primeira Guerra Mundial, em batalhas fundamentais para a derrocada do Império Turco Otomano



Lawrence da Arábia, 1962, Grã Bretanha
Dir.: David Lean

Peter O'Toole interpreta Lawrence
Peter O'Toole interpreta Lawrence

Um atraente homem louro se prepara para sair de casa. Diante dele, há uma moto e, na paisagem, os verdes campos britânicos. Decidido a ziguezaguear numa estrada de pedra, o piloto percebe alguém próximo da curva, desviando abruptamente. A cena muda. Agora, o filme nos leva ao funeral do rapaz, o tenente-coronel Thomas Edward Lawrence (1888-1935), o último grande aventureiro do imperialismo. No velório estão antigos colegas, superiores e subordinados, todos com visões discrepantes sobre a figura cuja importância histórica foi maior na península arábica do que na própria Inglaterra. Dirigido por David Lean, Lawrence da Arábia (1962) marca o fim da era dos épicos cinematográficos. Presente em várias das listas de melhores filmes do século XX, a película não é nem aventura nem drama. É uma espécie de drama filosófico, que une ação e melancolia.
Ali, somos apresentados à vida do oficial britânico que foi incumbido de liderar um exército árabe, capaz de criar confusão no interior do Império Turco Otomano, durante a Primeira Guerra Mundial. Fascinado pela tradição guerreira das tribos árabes, Lawrence se torna oficial de ligação entre o Império Britânico e os tuaregues muçulmanos, naquele que seria o front mais desprezado do conflito. É importante lembrar que a Primeira Guerra Mundial contrapôs França, Inglaterra, EUA e Rússia ao grupo das Potências Centrais: Alemanha, Império Austro-Húngaro e Império Otomano. Lawrence foi o primeiro a perceber a importância que os árabes teriam se, devidamente abastecidos pelos ingleses, pudessem lutar contra seus opressores turcos. Dotado de um profundo teor poético, Lawrence da Arábia não foi gravado nos estúdios Shepperton, como tantas produções britânicas da época, mas sim no Marrocos e na Jordânia. Toda a beleza das dunas e dos descampados rochosos está presente na fotografia de Lean.
Ainda que a areia e os montes desempenhem papel crucial na caracterização das batalhas, Lawrence continua sendo o grande enigma da trama. Perdido entre dois mundos, o inglês sabe que sua missão é servir ao governo de Sua Majestade, mas, impelido pelo seu amor à cultura árabe, acaba deixando de ser um oficial aliado para se tornar o efetivo líder do levante armado. A trama do estrangeiro que se insere numa cultura diferente de sua própria, ajudando-a a se libertar de um sistema opressor, é antiga e remonta ao período de formação de uma memória coletiva jungiana. Podemos identificá-la tanto nos mitos gregos, dos semi-deuses que, amando os humanos, sentem-se no dever de salvá-los; quanto em obras recentes, como o filme Avatar, de James Cameron, em que um ser humano é o único capaz de liderar a resistência da raça alienígena na’vi.
T. E. Lawrence nasceu no Reino Unido, em 1888
T. E. Lawrence nasceu no Reino Unido, em 1888
A diferença está na natureza complexa da relação que Lawrence mantém com a população da península. Ainda que ele queira ser um dos árabes com os quais luta, o paroxismo de sua situação é por eles reconhecido: para eles, o tenente-coronel será sempre o europeu fascinado pelo deserto, pelas lutas de cavalaria e cimitarra; enquanto os próprios combatentes pegam em armas para que sua região não seja apenas isso, tornando-se uma terra de desenvolvimento e ciência (tudo aquilo de que o jovem militar está tentando fugir).

 Respeito aos costumes
Quem dá vida a Lawrence é Peter O’Toole, que contracena com o egípcio Omar Shariff, na pele do Xerife Ali - um nobre árabe cujo sonho é modernizar sua terra natal a exemplo da democracia parlamentar britânica. Fazendo um contraponto à elite ilustrada representada por Shariff, temos o líder guerreiro Auda abu Tayi, interpretado por Anthony Quinn. Auda, apesar de não gostar de membros de outras tribos árabes, em especial daqueles que parecer negar as tradições de seu povo, envolve-se em acalorados debates com Ali. Ambos definem, assim, duas visões de mundo opostas, sendo uma voltada para o secularismo, a democracia e a aproximação com o Ocidente, e outra religiosa, tribal e, sobretudo, cínica acerca das benesses do mundo moderno. O filme demonstra, dessa forma, como as guerras de independência travadas nos desertos do Oriente Médio entre 1916 e 1918, foram um prenúncio das tensões sentidas ainda hoje naquela região. A necessidade de escolher entre um caminho democrático, ainda que aberto a influências ocidentais e outro, tão fechado quanto respeitoso aos costumes e à realidade imediata da população muçulmana.
Lawrence da Arábiaé uma tese sobre o desfecho das revoluções e a inevitabilidade do destino humano. Em seu ato final, Lawrence toma para si a responsabilidade de comandar uma assembléia de representantes árabes em Damasco, tentando provar que eles podem, sozinhos, resolver seus problemas. Porém, como diz um dos delegados presentes durante a sessão, haveria possibilidade de aqueles garbosos líderes governarem sem sequer saberem como fazer funcionar os geradores da cidade? Por mais valentes que tenham sido em seu levante, os comandantes árabes percebem que regime algum poderia constituir-se de maneira autônoma sobre o legado secular de isolamento ao qual foram submetidos. A impressão que fica é que as rebeliões e matanças ocorrem apenas para que a bandeira britânica, e não mais a turca, passe a ser erguida sobre os prédios das repartições públicas, entregues a empresas estrangeiras ao cabo do conflito. Resta a Lawrence, no banco do carona de um calhambeque militar, voltar à Inglaterra e à sua motocicleta, atravessando uma última vez a estrada tomada por caravanas tuaregues e abandonando a terra que tanto amou.  

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