terça-feira, 26 de junho de 2012


Pula a fogueira, João!

Resistindo a disputas entre a Igreja e os ritos pagãos, o fogo do santo se manteve aceso e hoje alimenta “a mais brasileira das festas”


“Acende a fogueira, João nasceu!” Parece canto de festa junina, mas foi uma ordem dada por Isabel assim que deu à luz, naquele 24 de junho. Conta a tradição popular que o fogo foi a forma de comunicar o parto à sua prima, Maria, que estava em outro ponto do vale. Maria também estava grávida: seis meses depois, era a vez de Jesus vir ao mundo.
Além dos laços familiares, João tinha outras coisas em comum com o profeta que daria origem ao cristianismo. Como Maria, Isabel também engravidou contra todas as probabilidades. Não era virgem, mas dizia-se que estava estéril e tinha idade avançada quando concebeu o último filho. Ele se tornou um pregador e ficou conhecido por batizar os gentios nas águas do Rio Jordão. Mas quando o apontavam como o esperado Messias dos judeus, ele anunciava: “Eu, na verdade, batizo-vos com água, mas eis que vem aquele que é mais poderoso do que eu, do qual não sou digno de desatar a correia das sandálias; esse vos batizará com o Espírito Santo e com fogo”. Referia-se ao primo.
Para ganhar de vez o apelido de “Batista”, realizou um feito capaz de fazer inveja a qualquer outro santo: abençoou o próprio Jesus, testemunhando em seguida a descida do Espírito Santo em forma de pomba – era o início da meteórica missão do “filho de Deus”.
As qualidades de João Batista lhe garantiram lugar de honra entre os santos católicos. Equiparando-se a Jesus, ele é o único do qual se comemora o dia do nascimento, e não o da morte. A diferença de seis meses entre eles inspirou uma clara demarcação no calendário cristão: se dividirmos o ano ao meio, metade é para Jesus (de junho a dezembro) e a outra metade para São João (de dezembro a junho).
Essa divisão tinha razão de ser. A Igreja vinha se esforçando desde o século XIV para doutrinar a população da Europa Ocidental, ainda muito afeita a rituais pré-cristãos, como os cultos solares e lunares associados à vida agrícola. Naquele continente, a diferença entre as estações é bem marcada por um contraponto: o solstício de verão – dia com maior duração da luminosidade do sol (21 de junho) –, e seis meses depois, o solstício de inverno – dia menos beneficiado pela luz solar (21 de dezembro). Entre os mais importantes cultos solares, registrava-se por toda a Europa a queima noturna de fogueiras no solstício de verão, para festejar a vitória da luz e do calor sobre a escuridão e o frio. A Igreja Católica adotou esses marcos cósmicos, atribuindo aos primos João e Jesus dois momentos de honra para seus nascimentos: o primeiro, perto do solstício de verão; o segundo, perto do solstício de inverno. Era uma maneira de dar novo significado às práticas pagãs relativas ao fogo.


Mas a mudança não foi suficiente para superar o incômodo que as fogueiras populares provocavam entre os religiosos. Elas representavam a perdição, a destruição das obras do Criador. Sem falar que as festas do fogo eram consideradas excessivamente licenciosas, inclusive no sentido da liberação sexual. Eis uma tarefa difícil: como subjugar o fogo e seu simbolismo carnal? Primeiro vieram as tentativas de erradicação. Os fogos eram perseguidos localmente por monges e bispos obstinados em acabar com todos os ritos pré-cristãos. Somente no Concílio de Trento (1545-1563) a Igreja encontrou uma solução: as fogueiras de solstício passaram a ser admitidas como “fogos eclesiásticos”. Para isso, foram banidos todos os sentidos que a Igreja Católica chamava de “superstições”. A fogueira, agora, era sinônimo de purificação – qualidade que a transformou em símbolo das execuções da Inquisição.

Os fogos atravessaram os séculos e cruzaram os oceanos sem se apagar. E se a população europeia não associava a festa do fogo e da luz ao santo Batista – visto como homem austero, comedor de mel e gafanhotos –, na nova colônia portuguesa a mensagem vingou rapidamente, ainda no século XVI, graças ao trabalho dos jesuítas. Prova disso está nos Tratados da Gente e da Terra do Brasil, escritos em 1584 por Fernão Cardim: “Três festas celebram estes índios com grande alegria, aplauso e gosto particular. A primeira é as fogueiras de São João, porque suas aldeias ardem em fogos, e para saltarem as fogueiras não os estorva a roupa, ainda que algumas vezes chamusquem o couro”.

A fogueira, as luzes e os fogos de artifício impressionavam e despertavam a simpatia dos nossos nativos, ajudando na aproximação entre índios e religiosos. Frei Vicente do Salvador, em sua História do Brasil (1627), conta que os índios “só acodem com muita vontade nas festas em que há alguma cerimônia, porque são mui amigos de novidades, como no dia de São João Batista, por causa das fogueiras e capelas”. Amigos de novidades e velhos amigos do fogo, como atestou o francês Jean de Léry, que conheceu os tupinambás no século XVI e acompanhou uma festa na aldeia em que usavam “uma vara de madeira (...) em cuja extremidade ardia um chumaço de petum [tabaco] e voltavam-na acesa para todos os lados soprando a fumaça contra os selvagens [nesse caso, os caraíbas]”.
Imagem: Museu de Arte Naif
Imagem: Museu de Arte Naif
Mas foi nas áreas urbanas que a festa de São João se tornou um acontecimento de sucesso, ligando os dois principais eixos da vida social: as ruas e as igrejas. Nos dias santificados, as cidades se iluminavam enquanto o chão das ruas era decorado e as janelas, enfeitadas com tecidos e potes de flores. As igrejas reuniam o público em encontros esporádicos para os quais todos acorriam, desejosos de ver e serem vistos, mas também para conversar, assistir às representações teatrais de cantos e danças.

Por causa da herança de influências pagãs de sua ancestral portuguesa, a festa de São João era palco de tensões políticas e sociais. As adivinhações, os batismos e casamentos de fogueira desagradavam às autoridades. No final do século XVII, o arcebispo da Bahia editou uma versão local das decisões do Concílio de Trento na qual recomendava “aos padres e outras pessoas que cuidam das igrejas” que “elas sejam por ocasião destas noites bem iluminadas, e que eles sejam vigilantes para que no seu interior não haja motivo de escândalo”. Por precaução, as rezas, missas e vigílias de velórios foram suspensas à noite. Tudo passou a ser estritamente vigiado de modo a não permitir excessos. Mesmo assim, várias desobediências às ordens do clero e do rei eram registradas pelas autoridades. Os fogos de artifício e as fogueiras estavam proibidos desde 1641, em ordem que seria constantemente renovada, atravessando até mesmo o século XX. E constantemente desrespeitada.

Não se deve pensar que a Igreja ficava apenas nas ameaças. Em 1769, o Santo Ofício condenou uma mulher à morte por predizer casamentos olhando os contornos do desenho feito pela clara de um ovo quebrado dentro de um copo, em noite de São João.

Em 1808, ao chegar ao Brasil, a Corte portuguesa trouxe consigo vários hábitos festivos, dando novo vigor às celebrações urbanas, inclusive as religiosas. Portugal tinha grande reputação pela beleza dos seus fogos de artifício. Também foram adaptadas músicas e danças de salão. A mais conhecida delas resiste até hoje como símbolo da festa: é a quadrilha junina.

A princípio, esta dança não era exclusiva do mês de junho. Animava também nossos carnavais e era especialmente apreciada nos círculos sociais da monarquia. O próprio D. Pedro II a acompanhava com gosto nos bailes solenes. Quando os hábitos da realeza saíram de moda, no início do período republicano, a quadrilha deixou de ser vista nos centros urbanos. Mas continuou sendo dançada em localidades menos importantes. Só voltaria à cena nos anos 1950, com o crescimento da industrialização e das migrações em massa do interior para as grandes cidades. É quando ocorre um fenômeno curioso: no lugar dos elegantes nobres de outrora, os protagonistas da dança feita aos pares são agora os “matutos”, os caipiras.

A figura do homem interiorano, com seus traços, suas roupas e seus trejeitos, assume lugar central na festa de São João, mas estereotipada pelo olhar urbano, seguindo uma tradição que vem desde o Jeca Tatu de Monteiro Lobato,  esboçada no livro Urupês (1918) e consolidada na propaganda do Biotônico Fontoura. Outros personagens reforçariam essa imagem, como o Jeca Tatu dos filmes de Mazzaropi e o Chico Bento, criado em 1961 e publicado em histórias em quadrinhos de Mauricio de Souza.

Dotado de traços positivos como a ingenuidade e o bom coração, o homem do interior é considerado “mais puro” que o da capital. Ele representa a nostalgia e a idealização do passado dos migrantes que hoje vivem nas cidades. Mas a homenagem não chega a alterar sua posição na estrutura social: depois da festa, ninguém deseja assumir aquela caricatura. O matuto é apenas o “bufão” da cidade.

E foi assim que o São João tornou-se “a mais brasileira das festas”, nas palavras de Roger Bastide (1898- 1974), famoso antropólogo francês que viveu em nosso país na primeira metade do século XX. Entre fogueiras, balões, danças, brincadeiras, música e muita comida, sempre sobra um espaço para o santo: lá está ele, representado em forma de menino, de cabelos encaracolados, carregando um cordeirinho nos braços. Inocente criança que dorme, e que a festa – licenciosa e profana, por mais que a Igreja tente impedir – quer despertar com seus fogos e rojões: “Acordai, João!”

Por: Luciana Chianca é professora de Antropologia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e autora do livro A festa do interior (Natal: EDUFRN, 2006).

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