sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Análise do Filme “O Patriota” como elemento do imaginário sobre a Revolução Americana

 Análise


            O filme retrata uma situação claramente maniqueísta, tão ao gosto das produções cinematográficas: é uma luta entre o bem e o mal, em nenhum momento paira qualquer dúvida sobre quem são o mocinho e o vilão.
            O drama pessoal de Benjamin Martin (o personagem de Mel Gibson) representa o universo de representações sobre a própria nação norte-americana no contexto descrito: Benjamin vai à Filadélfia participar de um congresso que vai decidir pela adesão da Carolina do Sul à guerra contra a Inglaterra; a despeito de sua simpatia pelo movimento de independência, ele se opõe à guerra e entra em sério conflito com seu filho Gabriel, que decide se alistar.
            A cena do congresso é significativa: apesar da imensa anglofobia que domina a cidade (bonecos vestidos como soldados ingleses são vistos sendo queimados na frente dos prédios públicos), a assembléia debate democraticamente a questão: até mesmo um americano leal à coroa inglesa fala com inteira liberdade.
            Quando o representante do exército continental fala em lutar pela nação causa uma curiosa confusão entre os assistentes, claramente identificados como cidadãos da Carolina do Sul. “Que nação é essa?”, indagam. “Uma nação americana”, responde um dos assistentes. “Somos cidadãos de uma nação americana, e nossos direitos estão sendo ameaçados por um tirano a 3.000 milhas daqui”.

            A fala de Benjamin contrária à independência retrata o pensamento libertário da época:

 “Porque se livrar de um tirano a 3.000 milhas daqui para cair nas mãos de 3.00 tiranos a uma milha daqui? Legisladores eleitos podem cercear os direitos de um homem tão facilmente quanto um rei.”

            Benjamin é contrário aos impostos ingleses e favorável ao “auto-governo das colônias”, mas decididamente se opõe a uma guerra contra a Inglaterra. O representante do exército declara: “Se nossos princípios exigem a independência, a guerra é o único caminho”. Ao final, Benjamin esclarece sua oposição: seu papel como pai (suas obrigações morais) se sobrepõe às suas obrigações como cidadão: “Sou pai, não posso me dar ao luxo de ter princípios”.
            Seu filho mais velho, Benjamin, contraria suas ordens e decide se alistar.
            O conflito Benjamin x Gabriel alegoriza a imensa divisão que havia entre os próprios colonos americanos quanto à questão de combater contra a Inglaterra, como aparece retratada no filme no resultado da votação pelo conflito: 28 votos contra 12; Willi Adams avalia entre 80.000 e 100.000 o número de pessoas que abandonaram as colônias rebeldes durante o conflito (Adams, p. 26); o texto de Bernard Vincent informa que até 1775 a idéia de independência era tremendamente impopular e “o homem que se pronunciasse a seu favor na presença de terceiros estaria se arriscando” (Vincent, p. 50); o próprio Thomas Paine é adversário da idéia nesse periodo.
           
            A primeira parte do filme retrata os americanos lutando à maneira européia e sofrendo sucessivas derrotas.
            Passaram-se dois anos e o conflito logo chega à propriedade de Benjamin, na Carolina do Sul; suas terras são ocupadas pelo exército inglês; os britânicos se comportam de forma desumana e na ocasião Gabriel é feito prisioneiro e outro filho de Benjamin, Thomas, é assassinado pelo coronel Willian Tavigton. Diante de tamanha violência Benjamin decide lutar.
            A invasão da propriedade de Benjamin e os excessos dos ingleses representam a forma como os colonos visualizam a situação: os protestos pacíficos dos colonos contra as taxações e um conjunto de medidas arbitrárias por parte do governo britânico são reprimidas violentamente, como na ocasião do Massacre de Boston, em 1770; diante da violência dos ingleses e do fracasso das negociações não resta outro recurso que a rebelião armada; o recurso discurso é assim apresentado por Willi Adams: “a revolução americana (...) é o último ato desesperado de resistência de colonos explorados” (Adams, p. 15).

            O personagem Benjamin constitui uma clara representação idealizada do colono norte-americano: ele é um pacífico agricultor devotado inteiramente à família; seu comportamento está impregnado de um forte senso moral de dever; no filme ele é um pai que educa sozinho seus sete filhos depois do falecimento de sua esposa, Elizabeth. Seu elevado senso de moral e justiça é mostrado nas cenas sobre sua propriedade: é um pai preocupado em educar seus filhos através do exemplo; os negros vistos trabalhando em suas plantações sugerem que seja um proprietário de escravos; mas quando as forças inglesas chegam e anunciam sua liberdade, um deles logo esclarece que são trabalhadores livres assalariados. Benjamin lembra exatamente a forma como Tocqueville representa o povo norte-americano em Democracia na América: “(...) as conquistas do americano se fazem com a charrua do agricultor, as do russo com a espada do soldado” (Losurdo, p. 94).
            Há outra dimensão evidente no filme: a enorme importância de que se reveste a “religião civil”, essa apropiração de valores protestantes que é tão singular na cultura americana (Oliveira, p. 13), na formatação do comportamento social do colono; o profundo senso moral da sociedade da época é retratado, por exemplo, na rígida etiqueta social que impede a aproximação entre o viúvo Benjamin e sua cunhada solteira, Charlote Seltton, a despeito da evidente “química” existente entre os dois personagens; outro exemplo significativo está no noivado entre Gabriel e Anne Howard: durante um intervalo nos combates Gabriel é hospedado na casa dos pais da noiva; a condição para poder dormir na casa é que ele seja costurado num saco que cobre todo seu corpo, para evitar qualquer contato físico entre os noivos durante a noite!
            Aqui se abre uma dicotomia interessante: ao mesmo tempo em que Benjamin e sua família representam uma espécie de inocente pureza cristã do colono americano, impregnado de altos valores morais e senso de justiça, Benjamin também representa um outro “eu” oculto, cuja lembrança é extremamente dolorosa. A “sombra” de Benjamin está representada pelo periodo em que ele lutou lado a lado com indígenas simpáticos à coroa inglesa contra os colonizadores franceses e seus próprios aliados autóctones; aqui ele surge como o colono fronteiriço que constitui uma síntese do que há de melhor nas duas culturas; ele assimila toda a habilidade indígena em lidar com a natureza do novo continente, suas capacidades guerreiras, e as combina harmoniosamente com a estratégia militar européia e os valores morais cristãos.
            Ele é aqui o que Frederick Turner retrata como a transformação do europeu em americano:

            “O resultado é que, até à fronteira, a inteligência americana deve as suas caracteristicas marcantes. Essa rudeza e força combinadas com a perspicácia e curiosidade que são, por sua vez, prática inventiva da mente, rápida para encontrar expedientes, que se agarram magistralmente às coisas materiais, sem nada no campo artístico, mas poderosa para efetuar grandes fins (...)” (Turner, in “o significado da fronteira na história americana”)

            Significativamente, a despeito de utilizar magistralmente o fuzil, a arma preferida de Benjamin é uma machadinha indígena que ele utiliza com grande violência, relíquia dos tempos das guerras com os franceses; que nos remete ao texto de Guazzelli:

            “O modelo do ‘civilizador’ encontra em Boone a figura típica do fronteiriço, que para superar os selvagens assemelha-se aos mesmos em hábitos, resistência às adversidades do ambiente e exercendo a brutalidade quando necessário, cioso de sua importância para o país (...). Daniel Boone, além de tudo, foi um destacado partisan durante a Revolução Americana: o homem da fronteira era também um dos fundadores da nação americana”. (Guazzelli, p. 130)

            Enquanto frontiersman, Benjamin é superior ao europeu. Três figuras européias da trama retratam isso com clareza: a primeira delas é o coronel William Tavington, responsável pela morte de dois filhos de Benjamin. Tavington é apresentado como um carreirista interesseiro, cruel e sádico; é desprovido de valores éticos; num dos momentos mais dramáticos da trama ele aprisiona famílias de colonos dentro de uma igreja e incendeia o prédio. A representação é evidente: o inglês não tem respeito nem pela vida humana nem pela religião, ambas tão caras ao colono.
            Enquanto Benjamin coleciona vitórias militares a partir de estratagemas criativos (um deles inclui uma troca de bonecos de feno vestidos como soldados ingleses por combatentes da milícia), Tavington somente sabe lutar com extrema brutalidade e covardia, expressa pela absoluta vantagem de recursos militares de que dispõe.
            O superior de Tavington, general Lord Charles Cornwallis, é representado como um aristocrata; fiel à sua origem nobre, Cornwallis também possui senso de justiça e de ética militar; se opõe aos excessos de Tavington, argumentando de forma pragmática: “esses colonos são nossos irmãos; depois que o conflito terminar restabeleceremos o comércio com eles”; mas, ao contrário de Benjamin, que mesmo nos momentos mais difíceis coloca seus valores morais acima das questões militares, o orgulho do lorde inglês fala mais forte que seus valores: diante da humilhação de ser repetidamente vencido por um bando de colonos ignorantes, Cornwallis dá carta branca para que Tavington use táticas genocidas contra os americanos.
            O terceiro europeu é aliado dos americanos, o francês Jean Villeneuve; o filme é mais benevolente com ele, e o personagem inspira simpatia pela maneira atrapalhada como é representado; mas a mensagem é clara: Villeneuve conhece apenas a forma européia de fazer guerra, que no contexto é muito inferior às estratégias de guerrilha indígena conduzidas por Benjamin. O Patriota, a despeito disso, faz enormes progressos ao retratar o apoio francês ao movimento norte-americano; diversos outros filmes retratam o conflito como uma luta exclusivamente entre os colonos americanos e a maior potência militar da época.

            Há outros dois personagens que merecem destaque: o primeiro é um escravo, Occam, que foi oferecido por seu proprietário para lutar na guerra de independência; seu proprietário assim o define: “ele não é experto, mas é forte como um touro”. Occam é discriminado por um colono branco a quem ele vai salvar a vida durante uma retirada; o colono então vai passar a tratá-lo como um igual. Inicialmente obrigado por seu proprietário a lutar, Occam passa a desenvolver um espírito patriótico quando fica sabendo de um decreto de George Washington que ordena a libertação dos escravos que lutem no exército continental.
            Tal como Benjamin, Houcar alegoriza no filme uma dinâmica da própria nação: o processo de incorporação do negro à nação americana. A ele pertence a mensagem de esperança, no final da história; ele aparece à frente de um grupo de homens brancos que constroem a nova casa de Benjamin; em nome do grupo ele diz: “Gabriel disse que se vencermos essa guerra poderemos construir um mundo novo. Decidimos começar aqui mesmo”.  O filme está, evidentemente, representando o mito ideal do nascimento da “nação da liberdade” que é tão caro aos norte-americanos; essa assimilação é na verdade muito posterior à própria Guerra Civil, quase um século depois.
            O outro personagem é o americano que havia se declarado leal à Coroa no inicio do filme; agora alistado no exército inglês como o capitão Wilkins; ele aparece no filme sendo discriminado por oficiais ingleses; Tavington se refere a ele como “mais um da colônia”. No afã de conquistar a confiança dos ingleses ele vai comandar a operação mais infame da película, queimando civis presos numa igreja. Wilkins é aqui a alegoria do traidor; tendo traído a sua pátria, perde seu norte, perde progressivamente todos seus valores morais.
            Finalmente, Gabriel pode ser interpretado como uma alegoria da pureza de ideais da nova nação; sua atuação mais significativa ao longo do filme se dá quando ele recupera uma bandeira norte-americana abandonada no campo de batalha; ele se ocupa de costurar todos seus remendos nos intervalos das batalhas, enquanto faz preleções apaixonadas sobre a nova nação que vai surgir para personagens como Houcar; quando ele é morto Benjamin pensa em abandonar a luta, desanimado. Mas a visão da bandeira restaurada por Gabriel lhe dá forças para voltar ao combate; Benjamin, que até então faz uma luta por vingança, agora luta pelos novos ideais representados pela bandeira; o frontiersman, o americano mais autêntico, adotou agora de corpo e alma os ideais da nova nação americana.

Bibliografia

ADAMS, Willi. Revolucion y fundacion del estado nacional, 1763-1815.

GUAZZELLI, César A. B. Fronteiras americanas na primeira metade do século XIX: o triunfo das representações nos Estados Unidos da América.

LOSURDO, Domenico. Democracia ou Bonapartismo: triunfo e decadência do sufrágio universal.

OLIVEIRA, Lucia. Americanos: representações da identidade nacional no Brasil e nos EUA.

TURNER, Frederick J. O Significado da fronteira na historia americana, 1893.

VINCENT, Bernard. Thomas Paine: o revolucionário da liberdade.

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