quinta-feira, 31 de maio de 2012

Um universo e tanto


A vida do escultor e pintor Francisco Brennand será retratada na literatura e no cinema


     Aos 85 anos, o pernambucano Francisco Brennand, conhecido por suas esculturas em cerâmica, ganha um livro e um documentário sobre sua vida. Seu diário, escrito entre 1949 e 1999, inspirou as duas obras e deve ser lançado em breve com o título O nome do livro: serão três volumes que somam quase 2.000 páginas.
    “A obra dele é muito original, nos mostra um artista de talento e visão própria da expressão estética.”, diz Ferreira Gullar, que assina o prefácio do livro O universo de Francisco Brennand, editado por G. Ermakoff. Situando Brennand como um artista moderno, Gullar acrescenta que o pernambucano dialoga com a arte clássica ao subverter a busca do belo e do sagrado mostrando o “feio como a outra face do mistério”, numa forma de afirmar a “danação da beleza”.
     O documentário, idealizado e dirigido por Mariana Brennand, conta a história do artista por meio de fotos de cerâmicas, reproduções de telas, desenhos e imagens da oficina onde ele trabalha, em Recife. A diretora diz que, para fazer o documentário, precisou construir uma relação de confiança com o tio-avô, que vive recluso no ateliê, criando. “Em 2002, tomei conhecimento da existência do diário, mas nunca tinha visto nada. Aos poucos consegui que ele me mostrasse suas memórias, e decidi que a história do filme seria contada por meio desse diário.” Ela adianta que um quarto volume está por vir e será intitulado O nome do outro.



"Sou um escultor com coração de pintor"


Uma escolha de fé?




Em Habemus Papam, papa foge na hora de assumir o cargo com medo de não ser apto para liderar a Igreja. Filme faz uma leve caricatura dos bastidores do conclave e problematiza a situação da Itália hoje




“Quem sou eu, que vá a Faraó e tire do Egito os filhos de Israel?” A pergunta está na Bíblia e pertence a Moisés, em resposta ao pedido de Deus para que O ajudasse na libertação dos judeus sob a escravidão egípcia. Não é, portanto, tão surreal que o papa do Vaticano criado pelo diretor Nanni Moretti no filme “Habemus Papam” tenha dúvidas quanto às suas capacidades para dar prosseguimento à missão de Pedro, promovendo as transformações que a Igreja precisa e liderando os milhões de católicos que o enxergam como o mais legítimo representante do Senhor na terra.
Semelhantes em idade avançada, Moisés e o cardeal Melville, brilhantemente interpretado pelo simpático francês Michel Piccoli, reivindicam o tradicional ideal cristão do livre-arbítrio. A crise: separação, discernimento, julgamento. Os sentimentos confusos levam o novo papa, no filme, ao isolamento e mesmo à fuga. É a representação mais clara de um conflito que escapa ao consciente: a doutrina de fé católica não pode compreender que o Espírito Santo tenha escolhido o fiel errado.
Coerente com tal raciocínio impensável para os católicos, e surpreendente para os ateus, a telona reproduz como poucas vezes os rituais internos do conclave - nome dado ao período de votação para eleição de um novo papa. O espectador acompanha então uma rotina humana demais para ser encarada como manifestação divina: blecaute, caneta sem tinta, ausência de velas, padres que caem da cadeira, orações desesperadas para que a Graça do papado não lhe seja entregue e, por fim, a contagem da votação, em que a ingênua vaidade e o orgulho também estão presentes.


Na sequência, quando a religião declina à tarefa de compreender o mundo e não sabe como interpretar as emoções humanas e os conflitos morais que se apresentam, ela humildemente pede ajuda à ciência. O desencanto causado pela consideração razoável de uma intervenção não religiosa parece pequeno diante de um possível buraco que a ausência do papa causaria na identidade nacional italiana fortemente enraizada em tradições católicas. O próprio diretor encarna um psicanalista enviado pelas autoridades religiosas para ajudar o pontífice a entender seu dilema e, ao longo de cenas cômico-dramáticas, acaba por dissolver supostas fronteiras entre as ideologias laicas e as religiosas.
Sem garantir privilégios a uma ou outra, são expostas afinidades culturais como a valorização da instituição familiar nas explicações dos conflitos internos e nos ideais de “bem comum” ou “bem estar”, no papel preponderante para a liberdade individual e, sobretudo, a recusa atual a uma religião/cultura de simbolização rigorosamente fechada em sintonia com estereótipos de fiéis e de homens. Lado a lado, as representações religiosas e terapêuticas da humanidade e de suas perturbações compõem uma Igreja clara e profundamente responsável pela proteção da cultura, pelo diagnóstico e solução dos problemas humanos. Instalada em cada um de seus fiéis, a Igreja vive com eles o problema contemporâneo da multiplicidade, fragmentação e reconstrução das identidades individuais e coletivas.

O retrato da Itália



Talvez seja esse o caso da Itália que Nanni Moretti buscou realçar. Atingida duramente pela crise econômica que divide a União Europeia desde 2008, a ainda jovem nação assiste suas matrizes definidoras da identidade diminuírem de tamanho e importância sem que se tenha construído algo para tomar seu lugar. As longínquas raízes culturais da civilização grega e do Império Romano historicamente utilizadas como elementos para fermentação de um sentimento de pertencimento mostram-se frágeis diante da perda da liderança econômica, do avanço da promiscuidade política e da invasão do público pelo privado, bem como conhecemos aqui no Brasil.
Fragmentos do nacionalismo mais agressivo construído pelo fascismo dos anos 1920 e 30 sucumbem com a fuga das empresas mais importantes do país. Mesmo o orgulho cultural consagrado, entre outros, pelo sucesso mundial do cinema de Pasolini, Visconti e Fellini, declina perante uma dívida pública de mais de 1,9 trilhão de euros, e cortes sucessivos nos gastos com a cultura. Na moda, Milão não é mais relevante como é Londres, Paris ou Nova York, e na literatura, Umberto Eco parece cada vez mais solitário na defesa das conquistas de uma Europa em paz há apenas 60 anos.
Por fim, o grande símbolo da missão universal do catolicismo italiano representado pelo Vaticano em Roma perde espaço no campo nacional e internacional para religiões evangélicas, islâmicas, entre outras. Ao mesmo tempo, a extrema direita cresce na França, Suécia, Finlândia, e Hungria estimulando o preconceito e a xenofobia que marcaram violentamente a história recente da Europa. Não sem razão, aos milhões que aguardam a saudação pública do papa, o diretor italiano de Habemus Papam reserva um imenso vazio. Ao que tudo indica, a idéia mais improvável se constituiu em representação identitária crítica e, por que não, real.
É preciso ainda mencionar a importante citação de Tchékhov através da peça “A gaivota” em cuja encenação o papa foragido se encontra com suas memórias. A falta de talento para ser ator durante a juventude o ajuda a compreender a incapacidade para se tornar a Santidade que o público espera ver atrás das cortinas. O teatro surge como o campo no qual foi possível intercambiar os tempos históricos permeados de feridas e frustrações que precisam ser resolvidas, espaço no qual a arte de contar os fatos da vida cotidiana ou mesmo as ficções, encontram as estruturas apropriadas da linguagem, da narrativa, da elaboração e transformam-se em História. Contudo, compreender este processo implica no desmantelamento de uma ideia há muito enraizada, que vê no futuro o único tempo aberto e indeterminado e omite a capacidade que o antigo possui de ser atualizado, de ser reinterpretado a ponto de influenciar decisivamente os nossos sonhos e as nossas vinganças.






Origem da vida Moderna

A EMERGÊNCIA DA CLASSE MÉDIA

     Durante a segunda metade do século XIX ocorreu na Europa um rápido crescimento tecnológico e industrial. Essas mudanças afetaram a economia, a urbanização, os costumes e o padrão de vida de um considerável número de pessoas.

     A classe média se beneficiou do progresso econômico que veio com a industrialização. O grupo passou então a valorizar a dedicação ao trabalho como forma de realização pessoal e os estudos como maneira de ascender (crescer)  socialmente.
     Aqueles que pertenciam à classe média procuravam imitar a forma de vida dos mais ricos, nas construções de suas moradias, nos hábitos culturais, na aquisição de produtos que representavam conforto ou distinção social.
     Por fazer parte da burguesia (pessoas ricas), a classe média convivia com o desafio de poder enriquecer e ascender socialmente; mas os ricos de má administração dos recursos e de empobrecimento também existiam. Uma das diferenças do mundo burguês em relação ao mundo aristocrático (classe dominante) do período anterior ao das revoluções Industrial e Francesa; é exatamente esta: o nobre poderia não ser endinheirado, mas possuía um estável prestígio político e social; os burgueses, alicerçados na liberdade e nos esforços individuais, até poderiam progredir e mudar de patamar social, mas não tinham garantia de permanecer nele.
Diferentes classes sociais


Primeiros triunfos da burguesia francesa


domingo, 27 de maio de 2012

Nos tempos de Mussolini -



Um dia muito especial (1977); Concorrência desleal (2001)
Dir.: Ettore Scola. Itália

A Itália durante a visita de Hitler, em 1938, é pano de fundo para dois filmes de Ettore Scola que retratam, de diferentes maneiras, a perseguição e a resistência na península durante o período fascista


     Primeiros dias de maio de 1938. Adolf Hitler percorre varias cidades italianas, numa visita oficial que visa estreitar ainda mais os laços que unem seu governo com o da península, liderado por Mussolini. O acordo de amizade, assinado dois anos antes entre os dois paises, e que foi recebendo logo em seguida pelo próprio Duce italiano o nome de Eixo, enaltecera os elementos que já aproximavam os dois regimes desde a tomada do poder de Hitler na Alemanha: progressiva eliminação de qualquer oposição e instauração de um regime político com partido único, autoridade concentrada nas mãos do líder (embora exercitada em meio a contínuos compromissos com vários centros de poder), supressão de uma atividade legislativa autônoma e ênfase no executivo, organização da propaganda e controle absoluto dos meios de comunicação. Os fascismos no poder se aliam e erguem uma muralha diante do mundo liberal e democrático.
Hitler e Mussolini em Florença, em 1938

Mussolini, no governo na Itália desde 1922, reduzira progressivamente os espaços de liberdade política, sindical, de expressão. Hitler, guia do Estado alemão desde 1933, reerguera militarmente o país, conduzindo-o num processo de expansão territorial sem fim: em março de 1938 a Áustria é anexada (Anschluss) ao Reich, Viena independente não existe mais. Fascistas e nazistas estão apoiando há tempo o golpe das tropas nacionalistas na Espanha republicana. Antes do fim do ano, as armas alemãs, ameaçando a integridade da Tchecoslováquia, tornarão necessária uma conferência entre os lideres das quatro potências (Inglaterra, França, Alemanha e Itália) em Munique para evitar um conflito europeu. Mas o ano de 1939 mostrará que a guerra europeia e mundial de possibilidade remota virou trágica realidade.
Um dia muito especial
     Mas voltamos a Roma, Itália, 6 de maio de 1938. Enquanto multidões em festa acolhem o Führer em sua visita à cidade, há quem não participe diretamente do evento histórico. No seu belíssimo “Um dia muito especial”, de 1977, o diretor italiano Ettore Scola conta a história de duas pessoas, Antonietta e Gabriele, que se encontram casualmente naquele mesmo dia, numa Roma quase deserta, estabelecendo entre eles uma relação de simpatia e amizade. Ela, casada com um funcionário do Estado fascista e mãe de seis filhos, dona de casa frustrada e triste; ele, locutor radiofônico que acaba de ser despedido de seu trabalho. O filme nos apresenta o encontro entre duas solidões, a da mulher que vive pelo marido e pelos filhos, numa existência sem amor e sem esperança, e a do homem, que chega a confessar sua homossexualidade, motivo pelo qual perdeu seu emprego (a discriminação do militante político de esquerda, do cigano, do africano das colônias italianas e do homossexual marca a política fascista antes até da perseguição aos judeus).
    No longa, somos apresentados ainda a duas modalidades distintas de se posicionar diante da ditadura, ambas presentes no cenário histórico da Itália de então: a aceitação, em parte convencida, em parte resignada, da situação, sem muita capacidade de crítica e refém do fascínio carismático de Mussolini (Antonietta), e a oposição ao regime de certo mundo intelectual, que tenta manifestar sua insatisfação, mas não encontra formas adequadas e eficazes, e acaba sucumbindo (Gabriele). 
Cena do filme: Um dia muito especial

     O trabalho de interpretação dos atores, Sophia Loren e Marcello Mastroianni, dois astros do cinema italiano e mundial aqui em dois papeis diferentes de seus habituais registros, e a direção primorosa de Scola (que realiza no inicio do filme um magistral plano-sequencia que nos introduz na vida de Antonietta e em sua residência) tornam a película um dos pontos altos da carreira do cineasta. O diálogo constante entre as pequenas histórias dos dois protagonistas e a história pública, ‘oficial’, que se desenrola nas ruas da cidade, registrada pela voz onipresente dos aparelhos de radio que acompanham a visita de Hitler, é o verdadeiro trunfo do filme.  Aquele que na história foi ‘um dia muito especial’, por contribuir para cimentar uma relação (Hitler-Mussolini) que levará o mundo à catástrofe da guerra, se confirma tal também para aquele homem e aquela mulher: pela amizade que realiza entre os dois, pela tomada de consciência que desperta, pelas transformações que opera em suas existências. 

Concorrência desleal

Cena do filme: Concorrência desleal

     Vinte e quatro anos e dezenas de filmes depois (entre os quais não se pode esquecer “Casanova e a revolução”, ainda com Mastroianni, em 1982) Scola volta àquele ano de 1938 e àquelas temáticas com seu delicioso “Concorrência desleal” (2001). De novo Roma, de novo 1938, então, mas agora o cenário não é um apartamento, e sim uma rua, onde, lado a lado, dois comerciantes trabalham no mesmo ramo de negócios: Umberto é um alfaiate que produz trajes sob medida, Leone é dono de uma loja de roupas prontas. Entre as respectivas famílias há laços de amizades, mas é concorrência aberta entre os dois. Concorrência ‘desleal’, segundo Umberto, pois seu rival se aproveita de suas ideias comerciais para aumentar suas próprias vendas, inclusive usando de preços mais baixos. Um detalhe importante: Leone e sua família são judeus, condição que, como para a maioria dos italianos de origem judia da época, não lhe impede uma pacifica convivência com o resto da população da rua.
     Mas estamos em 1938: Mussolini está cada vez mais ligando sua política à de Hitler (aqui também há a referência à passagem do líder nazista pela cidade, no mês de maio) e a partir de setembro varias medidas legislativas atingem os judeus, desde a proibição de freqüentar escolas publicas, até o impedimento de casar com arianos. Leone e a família são atingidos, em suas vidas e negócios. Agora a ‘deslealdade’ passa para o plano humano, existencial: por que uma identidade, uma diversidade pode se tornar fonte de perseguição? Desleal é o regime que seleciona e separa, desleal é o italiano que aponta o dedo, delata e se aproveita. Scola retoma aqui o tema da discriminação do diverso que já abordou no filme de 1977.
     Ótimos interpretes, Sergio Castellitto e Diego Abbatantuono nos papeis principais, com Gérard Depardieu como o professor antifascista irmão de Umberto, e a habitual direção de Scola, capaz de alternar os timbres  da emoção e do sorriso com os do drama, levam o longa rumo ao seu epílogo: como no de 1977, o final não é dos mais felizes, mas mostra que há lições que vêm para ficar.




DOSSIÊ - PESADELO E GLÓRIA


A sinfonia dos canhões
Dez batalhas. Não necessariamente as mais sangrentas ou as mais conhecidas. Os eventos descritos a seguir foram escolhidos por terem sido decisivos para a formação do Brasil.
Aqui estão narradas lutas travadas no campo - ou no rio, como em Humaitá - e até a tomada de Monte Castello, que nem foi propriamente uma batalha. Também estão presentes as vozes do combate e da testemunha, que fazem o passado parecer vivo, ironicamente em um tempo de destruição e morte.
Com ou sem vitória, esses confrontos tiveram seu papel na construção da história nacional, que também é feita de pólvora, chumbo e sangue.

PESADELO E GLÓRIA

A Força Expedicionária Brasileira conquistou Monte Castello enfrentando os alemães em cinco confrontos


    Em julho de 1944, desembarcaram em Nápoles os primeiros soldados da Força Expedicionária Brasileira, a única tropa latino-americana que lutou na Europa. Se a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial em 1942 deveu-se ao clamor popular causado pelo afundamento de dezenas de navios mercantes, a presença dos pracinhas na Itália atendia a três interesses do governo ditatorial da época: elevar o país no cenário internacional do pós-guerra, dar treino e armas aos militares e distrair a opinião pública, desgastada com uma década de regime de exceção.
     Poucos locais têm um significado tão especial na história das Forças Armadas brasileiras quanto o Monte Castello. Situado no Apenino Tosco-Emiliano, cerca de 50 quilômetros ao norte de Florença e a 1.000 metros acima do mar, não se trata de uma montanha destacada na paisagem, como muitos tendem a imaginar, e sim um morro com contornos difusos, rodeado por outros maiores. A FEB atacou o lugar sem sucesso por quatro vezes, três em novembro e uma em dezembro de 1944, até que a vitória sorriu após o quinto assalto, em 21 de fevereiro de 1945.
     Nenhum dos cinco ataques isolados pode ser considerado uma batalha; aliás, não houve batalhas na frente italiana após Cassino, em maio de 1944. A tomada de Monte Castello isoladamente pouco valia; era necessário que outros montes em volta, como Belvedere, Mazzancana e Torracia, também fossem conquistados. A importância do lugar residia no fato de que, com os alemães e seus canhões instalados nas cristas desses montes, era impossível para os aliados prosseguir o avanço para o norte.
     Se normalmente já há vantagens da defesa sobre o ataque na guerra moderna, isso se torna ainda mais verdade em um terreno montanhoso. Foi possível aos alemães defender eficazmente suas posições sem empregar grandes contingentes. Calcula-se que havia em Monte Castello cerca de 350 “tedescos” – os alemães na Itália, de acordo com os brasileiros – espalhados por pequenos abrigos camuflados e resistentes, cuidadosamente dispostos para maximizar o efeito do fogo. Uma só metralhadora MG 42, a melhor da guerra, podia varrer uma larga faixa de terreno a várias centenas de metros com uma quantidade de tiros assustadora – e havia dezenas delas –, além de morteiros e da artilharia situada mais atrás.
     Quanto aos soldados alemães que os pracinhas enfrentaram, há entre os brasileiros quem goste desqualificá-los, pintando-os como “velhos” cansados. É certo que a frente italiana era de quarta importância para a Alemanha,-e é natural que lá não fossem usadas suas tropas de melhor qualidade, mas é um equívoco achar que o alemão lutou mal na Itália – ou em qualquer outro lugar.  Na verdade, o exército da Wehrmacht – Forças Armadas do III Reich – era o melhor do mundo. O soldado alemão comum recebia melhor treinamento do que os oficiais anglo-americanos, o sistema de seleção e preparo dos oficiais não comissionados era inigualável e o sistema operacional tático era mais flexível e eficaz – no fim das contas, o alemão era praticamente imbatível quando lutava em condições parelhas. O fato de muitos serem veteranos exauridos da frente leste, a pior frente de batalha da história, só podia prejudicar as coisas para os adversários, pois o valor da experiência é fundamental, e nada como o clima italiano, considerado ameno pelos alemães, para uma pronta recuperação, sobretudo para quem veio das estepes geladas russas.
     Nos ataques iniciais de 24 e 25 de novembro, a FEB fez parte de uma força maior sob comando americano, a Task Force 45. Foram operações mal planejadas e executadas de modo ainda pior. No dia 25, por exemplo, um batalhão americano recuou sem avisar, expondo assim o flanco esquerdo do III Batalhão do 6º Regimento (Sampaio) ao fogo cruzado alemão, causando várias baixas. Uma vez que os soldados brasileiros nem deveriam ter sido usados, pois estavam em ação havia quase dois meses sem descanso, pode-se imaginar como foi difícil suportar essa situação sem deixar o moral despencar.
     A partir do terceiro ataque, no dia 29 de novembro, a FEB estava por si, mas continuou a empregar táticas erradas, não contando com apoio aéreo e, acima de tudo, atacando frontalmente. As baixas foram tais que um capitão, comandante de uma companhia, teve de ser substituído por um tenente no calor da luta. O moral, já claudicante, sofreu novo revés. O mito da inexpugnabilidade de Monte Castello começava a nascer entre os pracinhas.
     O ataque em dezembro foi o mais desastroso. A fim de garantir surpresa, algo difícil com os alemães situados em posições mais altas e vendo tudo, a artilharia foi dispensada e o mau tempo impediu o uso de aviões. Teimosamente, o comando da FEB insistiu em repetir um ataque frontal. Mesmo contra todas as adversidades, os brasileiros avançaram sem se importar com as baixas, chegando mesmo ao centro das defesas alemãs, mas tanta coragem não bastou, e quem não morreu ou não foi capturado recuou.
     Graças a intenso treinamento durante as longas semanas de inverno e a uma preparação mais bem engendrada, a FEB partiu para o derradeiro ataque a Castello em 21 de fevereiro, com suporte da artilharia, de aviões, e com a 10ª Divisão de Montanha do U.S.Army avançando ao lado sobre Belvedere. Sob pesado fogo dos canhões inimigos, o monte foi enfim tomado no fim do dia, enquanto os alemães se retiravam ordenadamente. A força brasileira tinha alcançado a maturidade.
    Com a vitória, a FEB respondeu com sangue e bravura à provocativa pergunta feita após o fracassado ataque de dezembro pelo general americano W. Crittenberger, comandante do IV Corpo de Exército, do qual a FEB fazia parte, sobre se a tropa brasileira tinha ou não capacidade ofensiva.


Homenagem aos pracinhas no Brasil. Acima, o espetáculo "Canta Brasil" (1945), de Luiz Carlos Peixoto de Castro, Geysa Bôscoli e Paulo Orlando, comemora a tomada de Monte Castello.

Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional
Por: Luis Felipe da Silva Neves é professor da Universidade Federal Fluminense e autor da dissertação “A Força Expedicionária Brasileira – uma perspectiva histórica” (UFRJ, 1992).

DOSSIÊ - EMBARCAÇÕES BLINDADAS


A sinfonia dos canhões
Dez batalhas. Não necessariamente as mais sangrentas ou as mais conhecidas. Os eventos descritos a seguir foram escolhidos por terem sido decisivos para a formação do Brasil.
Aqui estão narradas lutas travadas no campo - ou no rio, como em Humaitá - e até a tomada de Monte Castello, que nem foi propriamente uma batalha. Também estão presentes as vozes do combate e da testemunha, que fazem o passado parecer vivo, ironicamente em um tempo de destruição e morte.
Com ou sem vitória, esses confrontos tiveram seu papel na construção da história nacional, que também é feita de pólvora, chumbo e sangue.

EMBARCAÇÕES BLINDADAS

Na Guerra do Paraguai, ultrapassar a Fortaleza de Humaitá não era nada fácil. Para isso, as tropas aliadas usaram navios poderosos


Concluída poucos anos depois do episódio, "Passagem do Humaitá" (1868-72), tela de Victor Meirelles, celebra o feito da esquadra brasileira. - Museu Histórico Nacional / IBRAM / MINC / Photo Síntese

     Disputas por território e pela livre navegação na região do Pratalevaram o Império do Brasil, a Argentina e o Uruguai a enfrentar a República do Paraguai na Guerra da Tríplice Aliança (1865-1870) – mais conhecida como Guerra do Paraguai. A área onde se deram os embates era muito pantanosa e cortada por rios de difícil navegação para navios de grande porte. No Rio Paraguai, o principal da região, os paraguaios montaram um sistema defensivo baseado numa série de fortalezas, e a de Humaitá era a mais poderosa. A maioria das embarcações de guerra do Império era inadequada para enfrentar aqueles obstáculos naturais e militares, o que exigiu um rápido desenvolvimento da tecnologia naval brasileira. O auge desse processo foi a fabricação de um novo tipo de navio.
     No século XIX, a construção naval havia sido impulsionada pela Revolução Industrial. Em pouco mais de meio século, rápidas transformações resultaram em novos navios de guerra, como o Monitor, que foi usado pela primeira vez durante a Guerra de Secessão dos Estados Unidos (1861-1865). Ele tinha casco de madeira revestido de couraça de ferro, uma torre giratória com dois canhões, e ficava pouco exposto acima da linha d’água, o que o tornava um alvo difícil para os inimigos.
     O almirante Joaquim José Ignácio (1808-1869), então ministro da Marinha e futuro barão e visconde de Inhaúma, defendeu a aquisição desse tipo de embarcação em um relatório do Ministério da Marinha apresentado ao Parlamento em 1862. Curiosamente, foi ele mesmo quem empregou pela primeira vez aquele tipo de navio em favor do Brasil anos depois. Em dezembro de 1866, Inácio substituiu oentão visconde de Tamandaré, almirante Joaquim Marques Lisboa (1807-1897), no comando das forças navais brasileiras, quando já havia uma convicção de que a Fortaleza de Humaitá era vulnerável aos navios encouraçados. Tamandaré estava certo de que o general Francisco Solano López, presidente paraguaio, temia a esquadra brasileira porque sabia “que o seu famoso baluarte de Humaitá” não poderia “resistir a um ataque de navios encouraçados”.
     Inspirada no projeto norte-americano, a Marinha brasileira incorporou à sua frota seis monitores, todos construídos no Arsenal da Corte, sob a direção de Napoleão Level, o maior engenheiro naval da época. Três deles – o Pará, o Rio Grande e oAlagoas – foram utilizados para transpor a fortaleza paraguaia, muito em função de suas couraças, de seus sistemas de armamento e, principalmente, por serem rasos. Essas características facilitavam a superação de qualquer obstáculo.
     As tropas aliadas chegaram a Tagy, acima de Humaitá, em setembro de 1867. Dez encouraçados brasileiros já haviam transposto a Fortaleza de Curupaiti em agosto, e ficaram seis meses estacionados entre essa fortificação e Humaitá, numa posição muito delicada. A dificuldade para se obter suprimentos e a vulnerabilidade aos ataques paraguaios na região eram motivos de preocupação.
     Mesmo pressionado para avançar sobre Humaitá, o almirante Joaquim José Ignácio preferiu aguardar a chegada dos monitores. A oportunidade veio em fevereiro de 1868, com a subida do nível do rio, a destruição de algumas barcaças que sustentavam correntes de ferro que atravessavam o Rio Paraguai e o próprio desgaste da fortaleza, ocasionado pelos frequentes bombardeios da esquadra. Os monitores, que chegaram à frente de combate em dezembro de 1867, ultrapassaram Curupaiti em 13 de fevereiro de 1868 e logo se juntaram aos encouraçados.
     A operação teve início na madrugada do dia 19 de fevereiro, quando uma divisão naval comandada pelo capitão de mar e guerra Delfim Carlos de Carvalho, formada pelos encouraçados BarrosoBahia e Tamandaré e pelos três referidos monitores, investiu sobre Humaitá. O feito da Marinha imperial seria exaltado ao longo dos anos seguintes, como demonstra o depoimento do veterano de guerra José Francisco da Conceição registrado na Revista Marítima Brasileira, em 1882: “Uma pequena parte da então pujante armada nacional forçou as poderosas baterias de Humaytá, até ahi reputadas como inexpugnáveis e conhecidas sob a designação de Gibraltar da América do Sul, tal era a confiança que por sua posição e seu armamento inspirava aos seus defensores e ao estrangeiro que via esse importante ponto estratégico”.
O monitor Alagoas, construído no Arsenal da Corte, como outros cinco similares. Pouco exposto acima da linha d'água, o navio era um alvo difícil para os inimigos.


    Mas, no meio da chuva de fogo em que se transformou a batalha, ocorreram alguns contratempos. O encouraçado Bahia, desgovernado, chegou a abalroar o Tamandaré e o Pará, que ficaram bastante danificados, mas prosseguiram em sua missão. O cabo de reboque que mantinha unidos o Bahia e o Alagoas foi partido por uma mina, fazendo com que o monitor, com a força da correnteza que o arrastava rio abaixo, tivesse que avançar solitário, por cinco vezes, contra o fogo concentrado de Humaitá. O Alagoas, o Tamandaré e o Barroso chegaram a ter que encalhar para não afundar. Pouco depois, assim que superou um fogo cruzado em Timbó, a frota brasileira se encontrou com a tropa aliada em Tagy, completando o cerco à fortaleza paraguaia. A conquista definitiva da posição se deu em julho de 1868.
     A Guerra da Tríplice Aliança deixou lembranças mais ligadas às memórias institucionais militares, manifestadas em efemérides e solenidades. Mas a ultrapassagem de Humaitá foi representada na pintura e na historiografia militar, por mais de um século, como uma grande epopeia, digna de ocupar o rol das proezas homéricas.  

Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional
Por: Renato Restier é historiador e pesquisador do Departamento de História da Diretoria do Patrimônio Histórico e Documentação da Marinha e do Núcleo de Estudos e Pesquisas em História Militar do Instituto de Geografia e História Militar do Brasil (IGHMB).

DOSSIÊ - PARECIA UMA TEMPESTADE


A sinfonia dos canhões
Dez batalhas. Não necessariamente as mais sangrentas ou as mais conhecidas. Os eventos descritos a seguir foram escolhidos por terem sido decisivos para a formação do Brasil.
Aqui estão narradas lutas travadas no campo - ou no rio, como em Humaitá - e até a tomada de Monte Castello, que nem foi propriamente uma batalha. Também estão presentes as vozes do combate e da testemunha, que fazem o passado parecer vivo, ironicamente em um tempo de destruição e morte.
Com ou sem vitória, esses confrontos tiveram seu papel na construção da história nacional, que também é feita de pólvora, chumbo e sangue.

Cândido Lopez retratou com fidelidade episódios da Guerra do Paraguai. Acima, num detalhe da tela sobre Tuiuti, a cavalaria paraguaia massacrada pelo fogo aliado.


PARECIA UMA TEMPESTADE

A batalha do Tuiuti foi a mais violenta de todas que o Exército brasileiro travou durante a Guerra do Paraguai





     Foi um dos embates mais sangrentos de toda a história da América do Sul. Entre todos os que foram travados ao longo da Guerra do Paraguai (1864-1870), foi o maior e, mais do que isso, decisivo em relação ao potencial ofensivo dos beligerantes. Depois de começar com sabor de derrota, a batalha do Tuiuti acabou resultando em uma grande e rápida vitória militar das forças aliadas, que reuniam Brasil, Argentina e Uruguai. Algumas poucas horas do dia 24 de maio de 1866 foram suficientes para que o embate começasse a frustrar as expectativas do general paraguaio Francisco Solano López (1827-1870).
     A história desse confronto começou alguns meses antes, entre outubro de 1865 e março de 1866, quando os paraguaios tentaram invadir os territórios brasileiro e argentino, sem sucesso. A reação dos aliados se deu logo no mês de abril, quando adentraram o território inimigo e começaram a avançar pela região do Passo da Pátria até derrotar, no dia 2 de maio, seus adversários na região pantanosa de Estero Bellaco. Logo depois, as tropas prosseguiram rumo a Assunção enquanto iam fazendo o mapeamento do território. Em uma área que ficava a cerca de dez quilômetros da confluência dos rios Paraguai e Paraná, elas acabaram montando o acampamento de Tuiuti numa pequena elevação ladeada por matas, lagoas, pântanos e zonas de escoamento natural de águas estancadas chamadas de “esteros”. Nessa posição, os aliados tinham Estero Bellaco ao sul, o Estero Rojas e a lagoa Tuiuti ao norte, uma mata fechada e a Lagoa Pires a oeste, e uma vasta região pantanosa a leste.
     Mas entre o acampamento e as posições inimigas havia, além dos obstáculos naturais, uma série de trincheiras construídas pelos paraguaios, o que fazia de Tuiuti uma posição desfavorável para as ações ofensivas. Estima-se que os paraguaios tivessem, em maio de 1866, 25.000 soldados de prontidão na região. Os aliados, por sua vez, tinham cerca de 32.000 homens, sendo 21.000 brasileiros, 9.700 argentinos e 1.300 uruguaios. Na vanguarda, eles contavam com soldados uruguaios e brasileiros, sob o comando do general uruguaio Venâncio Flores (1808-1868), com destaque para o Primeiro Regimento Brasileiro de Artilharia a Cavalo, comandado pelo coronel Emílio Luiz Mallet (1801-1886). Os argentinos, voltados para o norte e para o leste, tinham um de seus contingentes liderado pelo general e presidente Bartolomé Mitre (1821-1906). Outro importante comandante do dispositivo militar da operação era o general brasileiro Manuel Luís Osório (1808-1879), cujo quartel-general ficava no centro do acampamento.
     Aproveitando sua vantagem territorial – havia grandes fragilidades na segurança dos flancos do acampamento aliado –, os paraguaios resolveram agir. Surpreendendo seus inimigos, eles não só procuraram atacar e atingir o centro do acampamento, como também mandaram uma parte de sua tropa para a retaguarda, a fim de bloquear qualquer tentativa de retirada. A ação teve início na manhã do dia 24 de maio, quando foram usados foguetes e granadas para anunciar o ataque. Rapidamente, os batalhões uruguaios e alguns brasileiros foram derrotados.
     O general Dionísio Cerqueira, que esteve no combate e deixou relatos escritos sobre o que viu nos campos de batalha, conta que o confronto foi um verdadeiro banho de sangue. “Os batalhões avançavam; a artilharia rugia rápida, infatigável, a revólver, era um contínuo trovejar. Parecia uma tempestade. Cornetas soavam a carga; lanças se enristavam, cruzavam-se as baionetas; rasgavam-se os corpos sadios dos heróis; espadas brandidas a duas mãos abriam crânios, cortavam braços, decepavam cabeças.”
     A artilharia brasileira contra-atacou abrindo fogo, buscando o flanco do inimigo que avançava, enquanto a cavalaria paraguaia manobrava para a esquerda e avançava contra o Primeiro Regimento Brasileiro de Artilharia. Nisso, um fosso, cavado a mando de Mallet, conseguiu impedir o avanço da cavalaria paraguaia. Seguiu-se, então, um confronto direto que envolveu duelos de espadas e lanças. Do centro da posição aliada, Osório movimentou rapidamente suas tropas para que os inimigos não avançassem acampamento adentro. Mesmo assim, o general Antonio de Sampaio (1810-1866), que comandava a Terceira Divisão de Infantaria, foi gravemente ferido e morreu enquanto recebia atendimento médico. O lado argentino também passou pelas mesmas dificuldades, mas nada disso conseguiu alterar os rumos do embate. Por volta das 16h30, os aliados, enfim, venceram a batalha em Tuiuti. As perdas humanas, entre mortos e feridos, chegaram a 13.000 paraguaios e 3.931 aliados – sendo que 3.029 destes eram brasileiros.
     De acordo com o depoimento que deixou, Cerqueira, literalmente, viu a morte de perto na ocasião. “Quando acabou a batalha, tinha a minha blusa, única, rota na altura do ombro direito, por uma bala, que passou triscando a pele. (...) Era noite quando voltamos ao acampamento. Perto da minha barraca, estava estendido, com os miolos de fora, um amigo de infância, o tenente de voluntários Emídio de Azevedo Monteiro. Ajoelhei-me ao seu lado; apertei-lhe a mão gelada e dei-lhe um beijo de adeus na larga testa ensanguentada.”
     Tuiuti foi palco de outras batalhas memoráveis, mas a maior delas foi, sem dúvida, a de 24 de maio de 1866. Tanto que, depois do embate, o general Sampaio, por ter morrido em combate, tornou-se patrono da Infantaria. Da mesma forma, Emílio Luiz Mallet foi condecorado patrono da Artilharia, e o general Osório, peça-chave da reação aliada, tornou-se patrono da Cavalaria [Ver “Eternogeneral” em RHBN nº 52]. A Guerra do Paraguai, de modo geral, e a batalha do Tuiuti, em particular, legaram ao Exército brasileiro seus principais heróis de guerra.

Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional
Por: Braz Batista Vas é professor da Universidade Federal do Tocantins e autor da tese “O final de uma guerra e suas questões logísticas: o Conde d’Eu na Guerra do Paraguai (1869 – 1870)” (Unesp, 2011).

DOSSIÊ - O FIM DO MAR DE ROSAS


A sinfonia dos canhões
Dez batalhas. Não necessariamente as mais sangrentas ou as mais conhecidas. Os eventos descritos a seguir foram escolhidos por terem sido decisivos para a formação do Brasil.
Aqui estão narradas lutas travadas no campo - ou no rio, como em Humaitá - e até a tomada de Monte Castello, que nem foi propriamente uma batalha. Também estão presentes as vozes do combate e da testemunha, que fazem o passado parecer vivo, ironicamente em um tempo de destruição e morte.
Com ou sem vitória, esses confrontos tiveram seu papel na construção da história nacional, que também é feita de pólvora, chumbo e sangue.

O FIM DO MAR DE ROSAS

O êxito na batalha de Monte Caseros garantiu ao Brasil a superioridade diplomática e militar na região platina


No desenho aquarelado de Rangel, o centro de linha do Exército Grande durante a batalha de Monte Caseros. No combate, de seis horas de duração, o coronel Osorio teve atuação destacada.
     A região do Rio da Prata interessava muito a D. Pedro II em meados do século XIX. Navegar pelos rios Paraná e Uruguai tinha uma importância crucial, já que eram vitais para o acesso do Rio de Janeiro a Mato Grosso, província isolada por terra do resto do Brasil. Além disso, os fazendeiros gaúchos tinham interesse em explorar economicamente as terras uruguaias. O problema era que o governador de Buenos Aires, Juan Manuel de Rosas (1793-1877), se recusava a abrir as vias fluviais do interior do país para os navios mercantes estrangeiros.
     Rosas estava no apogeu de sua força política na segunda metade dos anos 1840, um verdadeiro ditador da Confederação Argentina (1835-1862). Na guerra civil uruguaia (1838-1851), na qual blancos – proprietários de terra que controlavam quase todo o interior uruguaio – e colorados – grupo que contava com a adesão dos comerciantes e das potências europeias – se confrontavam, Rosas apoiava ativamente os blancos de Manuel Oribe (1792-1857), que mantinham sob cerco Montevidéu, onde se encontrava o governo colorado.
     Mas a situação de Rosas era bem diferente no início da década. Hostilizado pela Inglaterra e pela França, ele enfrentava movimentos contrários a seu governo nas províncias do chamado “litoral fluvial”. Para conter essa situação, o governador tentou se aliar ao Brasil: enviou o general Tomás Guido ao Rio de Janeiro em 1841 para que propusesse ao Império uma aliança para pacificar o Uruguai e o Rio Grande do Sul, onde transcorria a Revolução Farroupilha (1835-1845). A aliança foi assinada em 24 de março de 1843 por D. Pedro II. Mas Rosas acabou rejeitando o documento, alegando que Manuel Oribe não era reconhecido como presidente do Uruguai.
     Para a Coroa brasileira, essa recusa demonstrava que o governador argentino teria objetivos expansionistas em relação ao Paraguai e ao próprio Uruguai. A diplomacia imperial – orientada pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Paulino José Soares de Sousa (1807-1866), futuro visconde do Uruguai – tratou então de traçar uma estratégia para anular Rosas. Para começar, reconheceu a independência do Paraguai em 1844. Em seguida, fez com que o Banco Mauá emprestasse dinheiro para sustentar o governo colorado de Montevidéu (1850), quando a província estava sem apoio financeiro e militar da Inglaterra e da França. E ainda se aproximou de Justo José de Urquiza (1801-1870), governador da província argentina de Entre Ríos, que andava descontente com as restrições impostas ao comércio no Rio Paraná.
     O aumento da tensão levou Rosas a romper relações diplomáticas com o Brasil em outubro de 1850. Urquiza, então, fez uma proposta ao Império: o Brasil se aliaria ao governo colorado para pacificar o Uruguai. Assinado em 29 de maio de 1851, o acordo era contra osblancos e determinava que a ação se voltaria contra Rosas, caso ele interviesse em favor de Oribe. Rosas, em resposta, declarou guerra ao Império no dia 18 de agosto. 
     O conde – futuro duque – de Caxias, que acumulava as funções de presidente e chefe militar do Rio Grande do Sul, reuniu um exército de 16.200 homens para bloquear a costa marítima e fluvial do Uruguai. Isso impediria que Oribe recebesse reforços de Rosas enquanto as tropas brasileiras e as de Urquiza invadissem o território uruguaio.  A ação militar foi curta, e a rendição de Oribe foi assinada em 8 de outubro de 1851.
     Pacificado o Uruguai, o Brasil tratou de assinar um novo tratado de aliança para derrotar Rosas de vez. Uniu-se ao próprio Uruguai e às províncias argentinas de Entre Ríos e Corrientes, que formaram uma tropa cujo ponto de encontro seria a localidade de Diamante, na margem do Rio Paraná. A região já era dominada pela Esquadra Imperial, que permitiu que os aliados ultrapassassem a posição de artilharia de Rosas no Passo de Tonelero. O exército aliado, comandado por Urquiza, atacaria Rosas pela margem direita do Rio Paraná, enquanto Caxias permaneceria em Sacramento, no Uruguai, com tropas de reserva.
     Os aliados passaram de Diamante para a outra margem do rio no dia 23 de dezembro e marcharam rumo a Buenos Aires. O exército de Urquiza tinha 25.000 bons combatentes, mas era carente de organização e de armamentos. Para compensar, ele contava com o apoio de 1.800 uruguaios e de 4.020 soldados brasileiros, que tinham uma boa estrutura de comando e armas modernas, como o “foguete a Congreve”, um tipo de projétil.
     O confronto ocorreu, finalmente, no dia 3 de fevereiro de 1852, na batalha de Monte Caseros, travada a 30 quilômetros de Buenos Aires. Durante cerca de seis horas, os aliados enfrentaram o exército de 26.000 homens de Rosas, que tinha a vantagem de ocupar posições defensivas sólidas e de contar com uma artilharia superior à de seus adversários. Mas a linha aliada tinha uruguaios à direita, a divisão brasileira ao centro e a divisão argentina de cavalaria, do general Araoz de la Madrid – da qual fazia parte o 2º Regimento de Cavalaria brasileira, comandado pelo coronel Manuel Luis Osorio – à esquerda. Essa divisão e o regimento brasileiro foram tão fundamentais para a vitória que, mais tarde, a bravura de Osorio e o desempenho de seus comandados seriam elogiados por Urquiza.
     Apesar da longa duração do embate, o número de baixas foi pequeno. Entre mortos e feridos havia cerca de 600 aliados e 1.500 membros do exército de Rosas. O ditador argentino se refugiou em um navio britânico no porto de Buenos Aires e se exilou na Inglaterra, onde faleceu. Para o Império brasileiro, a vitória em Caseros garantiu uma certa superioridade diplomática e militar na região platina. Mais do que isso, ela desobstruiu os interesses econômicos dos fazendeiros gaúchos na região, depois que Brasil e Uruguai assinaram, em 1851, um tratado de limites que atendia às posições defendidas pela diplomacia imperial.

Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional
Por: Francisco Doratioto é professor da Universidade de Brasília e autor de Osorio, a espada liberal do Império (Companhia das Letras, 2008).

DOSSIÊ - DERROTA NAS ENTRELINHAS


A sinfonia dos canhões
Dez batalhas. Não necessariamente as mais sangrentas ou as mais conhecidas. Os eventos descritos a seguir foram escolhidos por terem sido decisivos para a formação do Brasil.
Aqui estão narradas lutas travadas no campo - ou no rio, como em Humaitá - e até a tomada de Monte Castello, que nem foi propriamente uma batalha. Também estão presentes as vozes do combate e da testemunha, que fazem o passado parecer vivo, ironicamente em um tempo de destruição e morte.
Com ou sem vitória, esses confrontos tiveram seu papel na construção da história nacional, que também é feita de pólvora, chumbo e sangue.

DERROTA NAS ENTRELINHAS
Há fortes indícios de que o desfecho da batalha de Porongos foi causado por um ofício forjado de Caxias

     A Revolução Farroupilha, que teve início em 1835, foi uma grave ameaça para o Império, pois sua proposta republicana separatista punha em risco a integridade nacional. Além dessa questão política delicada, reprimir a rebelião foi uma tarefa difícil para o Império – os rebeldes controlaram boa parte da província gaúcha, sitiando Porto Alegre e chegando até Santa Catarina. Mas de todos os eventos ligados à rebelião, a batalha de Porongos, travada em 14 de novembro de 1844 perto de Bagé (RS), foi um dos que mais se destacaram. Curiosamente, a importância desse embate é maior hoje do que foi na época da guerra [Ver RHBN nº 58].
     Desde o começo do movimento farroupilha, a natureza da luta favorecia os rebeldes. O movimento das forças montadas dos gaúchos nas planícies do pampa era difícil de ser controlado pela infantaria do Império. Já os revolucionários, por se identificarem com a causa, estavam mais motivados, e, entre eles, um grupo chamava a atenção por sua coragem e valor: a cavalaria negra comandada pelo coronel Teixeira Nunes. Ela era formada por libertos, que desejavam mudanças sociais, e por escravos, que seriam alforriados após a participação na luta.
     Depois de ter conseguido reprimir revoltas anteriores em outras províncias, Luís Alves de Lima e Silva (1803-1880), então barão de Caxias, foi nomeado comandante das forças da legalidade em 1843. Ao realizar uma campanha para isolar os rebeldes dos pontos de abastecimento, ele colocou os farrapos em permanente fuga, tornando sua situação insustentável. Negociações de paz começaram a ser feitas, mas, antes do acordo, o Império ainda enfrentaria a última força farroupilha considerável, que contava com cerca de 600 combatentes, sob o comando do general David Canabarro (1796-1867), acampados no Serro de Porongos. Para o embate, Caxias enviou um destacamento de 1.120 homens sob o comando do coronel Francisco Pedro, que surpreendeu os farroupilhas à noite. Sem conseguir montar uma resistência efetiva, 100 rebeldes foram mortos e 333 tornaram-se prisioneiros. Os remanescentes do exército debandaram e a última grande força organizada dos farroupilhas deixou de existir. Já as perdas legalistas foram desprezíveis: apenas quatro feridos.
Lanceiro da Cavalaria Negra

     Se as negociações de paz já haviam sido iniciadas, por que esse combate veio a se tornar tão importante? Muitos acreditam que o inexplicável resultado da batalha foi o que ela teve de mais excepcional. O próprio Caxias escreveria que ali tinha sido a primeira vez que Canabarro fora surpreendido, o que antes parecia impossível, dada a sua “incansável vigilância”. Mas pode ser que a razão seja outra. Suspeita-se que o general farroupilha tinha conspirado para encerrar a rebelião, dúvida que surge de ofício de Caxias de 9 de novembro, que teria sido forjado pelo coronel Francisco Pedro para incriminar o líder farroupilha. “Não receie a infantaria inimiga, pois ela há de receber ordem de um ministro e de seu general em chefe, para entregar o cartuchame”, teria dito Caxias no documento, que ainda explicava o que Canabarro deveria fazer para escapar ileso. Oficialmente, a ideia de Francisco Pedro era fazer circular o documento forjado para desmoralizar o inimigo e impedir a continuação da luta. Com a paz de Poncho Verde, em 1º de março de 1845, esse objetivo foi alcançado.
     Historiadores mais tradicionalistas, que veem Caxias como o maior herói do Exército, negam a veracidade do complô. Mesmo assim, a batalha tem aspectos suspeitos, como a falta de alerta dos rebeldes ou o fato de que havia sido ordenado o recolhimento da munição da infantaria farroupilha, inviabilizando sua resistência. Canabarro conseguiu escapar, e a rebelião, em termos práticos, acabou tal como estava previsto no ofício.
     Independentemente das maquinações entre os comandantes para obter a paz, o ofício de Caxias ainda conteria uma passagem que hoje é lembrada pelo movimento negro: “No conflito, poupe o sangue brasileiro quanto puder, principalmente da gente branca da província ou índios, pois bem sabe que essa pobre gente ainda pode ser útil no futuro”. Não é possível determinar se o documento é verdadeiro, mas isso não importa. A Revolução Farroupilha foi uma das muitas lutas em que os escravos buscaram meios de melhorar sua situação e provar que eram valorosos como qualquer homem livre. Com a paz estabelecida, ficou determinado que não haveria recrutamento forçado para os soldados republicanos e que todos os ex-escravos combatentes e os prisioneiros seriam libertados.
Um destacamento do exército imperial sob o comando do coronel Francisco Pedro, surpreendeu os farroupilhas, que não conseguiram montar uma resistência efetiva. (Ilustração Renato Alarcão)

     Mas não foi isso que aconteceu. Logo em seguida, 120 lanceiros negros foram recrutados à força para a Cavalaria do Império e tiveram que enfrentar uma situação de semicativeiro. De acordo com um ofício de 1857, o diretor do Arsenal do Rio de Janeiro chegou a perguntar ao ministro como deveria atuar no caso do “preto Antônio Simões”, que havia sido “liberto e do número daqueles que vieram do Rio Grande do Sul por tomarem parte na Rebelião que ali houve”. Foi então autorizado o uso de castigos corporais contra Simões, tal como se fazia com os outros escravos. Por conta de fatos como esse, a batalha de Porongos acabou se tornando um símbolo do modo como a sociedade do Império tratava os negros – negando até mesmo os direitos básicos e renegando promessas feitas anteriormente. Hoje, há um movimento pelo reconhecimento do embate como um importante momento da trajetória das lutas raciais que propõe o tombamento do local do conflito como patrimônio histórico nacional.

Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional
Por: Adler Homero Fonseca de Castro é pesquisador do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.