A sinfonia dos canhões
Dez batalhas. Não necessariamente as mais sangrentas ou as mais conhecidas. Os eventos descritos a seguir foram escolhidos por terem sido decisivos para a formação do Brasil.
Aqui estão narradas lutas travadas no campo - ou no rio, como em Humaitá - e até a tomada de Monte Castello, que nem foi propriamente uma batalha. Também estão presentes as vozes do combate e da testemunha, que fazem o passado parecer vivo, ironicamente em um tempo de destruição e morte.
Com ou sem vitória, esses confrontos tiveram seu papel na construção da história nacional, que também é feita de pólvora, chumbo e sangue.
PESADELO E GLÓRIA
A Força Expedicionária Brasileira conquistou Monte Castello enfrentando os alemães em cinco confrontos
Em julho de 1944, desembarcaram em Nápoles os primeiros soldados da Força Expedicionária Brasileira, a única tropa latino-americana que lutou na Europa. Se a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial em 1942 deveu-se ao clamor popular causado pelo afundamento de dezenas de navios mercantes, a presença dos pracinhas na Itália atendia a três interesses do governo ditatorial da época: elevar o país no cenário internacional do pós-guerra, dar treino e armas aos militares e distrair a opinião pública, desgastada com uma década de regime de exceção.
Poucos locais têm um significado tão especial na história das Forças Armadas brasileiras quanto o Monte Castello. Situado no Apenino Tosco-Emiliano, cerca de 50 quilômetros ao norte de Florença e a 1.000 metros acima do mar, não se trata de uma montanha destacada na paisagem, como muitos tendem a imaginar, e sim um morro com contornos difusos, rodeado por outros maiores. A FEB atacou o lugar sem sucesso por quatro vezes, três em novembro e uma em dezembro de 1944, até que a vitória sorriu após o quinto assalto, em 21 de fevereiro de 1945.
Nenhum dos cinco ataques isolados pode ser considerado uma batalha; aliás, não houve batalhas na frente italiana após Cassino, em maio de 1944. A tomada de Monte Castello isoladamente pouco valia; era necessário que outros montes em volta, como Belvedere, Mazzancana e Torracia, também fossem conquistados. A importância do lugar residia no fato de que, com os alemães e seus canhões instalados nas cristas desses montes, era impossível para os aliados prosseguir o avanço para o norte.
Se normalmente já há vantagens da defesa sobre o ataque na guerra moderna, isso se torna ainda mais verdade em um terreno montanhoso. Foi possível aos alemães defender eficazmente suas posições sem empregar grandes contingentes. Calcula-se que havia em Monte Castello cerca de 350 “tedescos” – os alemães na Itália, de acordo com os brasileiros – espalhados por pequenos abrigos camuflados e resistentes, cuidadosamente dispostos para maximizar o efeito do fogo. Uma só metralhadora MG 42, a melhor da guerra, podia varrer uma larga faixa de terreno a várias centenas de metros com uma quantidade de tiros assustadora – e havia dezenas delas –, além de morteiros e da artilharia situada mais atrás.
Quanto aos soldados alemães que os pracinhas enfrentaram, há entre os brasileiros quem goste desqualificá-los, pintando-os como “velhos” cansados. É certo que a frente italiana era de quarta importância para a Alemanha,-e é natural que lá não fossem usadas suas tropas de melhor qualidade, mas é um equívoco achar que o alemão lutou mal na Itália – ou em qualquer outro lugar. Na verdade, o exército da Wehrmacht – Forças Armadas do III Reich – era o melhor do mundo. O soldado alemão comum recebia melhor treinamento do que os oficiais anglo-americanos, o sistema de seleção e preparo dos oficiais não comissionados era inigualável e o sistema operacional tático era mais flexível e eficaz – no fim das contas, o alemão era praticamente imbatível quando lutava em condições parelhas. O fato de muitos serem veteranos exauridos da frente leste, a pior frente de batalha da história, só podia prejudicar as coisas para os adversários, pois o valor da experiência é fundamental, e nada como o clima italiano, considerado ameno pelos alemães, para uma pronta recuperação, sobretudo para quem veio das estepes geladas russas.
Nos ataques iniciais de 24 e 25 de novembro, a FEB fez parte de uma força maior sob comando americano, a Task Force 45. Foram operações mal planejadas e executadas de modo ainda pior. No dia 25, por exemplo, um batalhão americano recuou sem avisar, expondo assim o flanco esquerdo do III Batalhão do 6º Regimento (Sampaio) ao fogo cruzado alemão, causando várias baixas. Uma vez que os soldados brasileiros nem deveriam ter sido usados, pois estavam em ação havia quase dois meses sem descanso, pode-se imaginar como foi difícil suportar essa situação sem deixar o moral despencar.
A partir do terceiro ataque, no dia 29 de novembro, a FEB estava por si, mas continuou a empregar táticas erradas, não contando com apoio aéreo e, acima de tudo, atacando frontalmente. As baixas foram tais que um capitão, comandante de uma companhia, teve de ser substituído por um tenente no calor da luta. O moral, já claudicante, sofreu novo revés. O mito da inexpugnabilidade de Monte Castello começava a nascer entre os pracinhas.
O ataque em dezembro foi o mais desastroso. A fim de garantir surpresa, algo difícil com os alemães situados em posições mais altas e vendo tudo, a artilharia foi dispensada e o mau tempo impediu o uso de aviões. Teimosamente, o comando da FEB insistiu em repetir um ataque frontal. Mesmo contra todas as adversidades, os brasileiros avançaram sem se importar com as baixas, chegando mesmo ao centro das defesas alemãs, mas tanta coragem não bastou, e quem não morreu ou não foi capturado recuou.
Graças a intenso treinamento durante as longas semanas de inverno e a uma preparação mais bem engendrada, a FEB partiu para o derradeiro ataque a Castello em 21 de fevereiro, com suporte da artilharia, de aviões, e com a 10ª Divisão de Montanha do U.S.Army avançando ao lado sobre Belvedere. Sob pesado fogo dos canhões inimigos, o monte foi enfim tomado no fim do dia, enquanto os alemães se retiravam ordenadamente. A força brasileira tinha alcançado a maturidade.
Com a vitória, a FEB respondeu com sangue e bravura à provocativa pergunta feita após o fracassado ataque de dezembro pelo general americano W. Crittenberger, comandante do IV Corpo de Exército, do qual a FEB fazia parte, sobre se a tropa brasileira tinha ou não capacidade ofensiva.
Homenagem aos pracinhas no Brasil. Acima, o espetáculo "Canta Brasil" (1945), de Luiz Carlos Peixoto de Castro, Geysa Bôscoli e Paulo Orlando, comemora a tomada de Monte Castello. |
Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional
Por: Luis Felipe da Silva Neves é professor da Universidade Federal Fluminense e autor da dissertação “A Força Expedicionária Brasileira – uma perspectiva histórica” (UFRJ, 1992).
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