domingo, 27 de maio de 2012

Nos tempos de Mussolini -



Um dia muito especial (1977); Concorrência desleal (2001)
Dir.: Ettore Scola. Itália

A Itália durante a visita de Hitler, em 1938, é pano de fundo para dois filmes de Ettore Scola que retratam, de diferentes maneiras, a perseguição e a resistência na península durante o período fascista


     Primeiros dias de maio de 1938. Adolf Hitler percorre varias cidades italianas, numa visita oficial que visa estreitar ainda mais os laços que unem seu governo com o da península, liderado por Mussolini. O acordo de amizade, assinado dois anos antes entre os dois paises, e que foi recebendo logo em seguida pelo próprio Duce italiano o nome de Eixo, enaltecera os elementos que já aproximavam os dois regimes desde a tomada do poder de Hitler na Alemanha: progressiva eliminação de qualquer oposição e instauração de um regime político com partido único, autoridade concentrada nas mãos do líder (embora exercitada em meio a contínuos compromissos com vários centros de poder), supressão de uma atividade legislativa autônoma e ênfase no executivo, organização da propaganda e controle absoluto dos meios de comunicação. Os fascismos no poder se aliam e erguem uma muralha diante do mundo liberal e democrático.
Hitler e Mussolini em Florença, em 1938

Mussolini, no governo na Itália desde 1922, reduzira progressivamente os espaços de liberdade política, sindical, de expressão. Hitler, guia do Estado alemão desde 1933, reerguera militarmente o país, conduzindo-o num processo de expansão territorial sem fim: em março de 1938 a Áustria é anexada (Anschluss) ao Reich, Viena independente não existe mais. Fascistas e nazistas estão apoiando há tempo o golpe das tropas nacionalistas na Espanha republicana. Antes do fim do ano, as armas alemãs, ameaçando a integridade da Tchecoslováquia, tornarão necessária uma conferência entre os lideres das quatro potências (Inglaterra, França, Alemanha e Itália) em Munique para evitar um conflito europeu. Mas o ano de 1939 mostrará que a guerra europeia e mundial de possibilidade remota virou trágica realidade.
Um dia muito especial
     Mas voltamos a Roma, Itália, 6 de maio de 1938. Enquanto multidões em festa acolhem o Führer em sua visita à cidade, há quem não participe diretamente do evento histórico. No seu belíssimo “Um dia muito especial”, de 1977, o diretor italiano Ettore Scola conta a história de duas pessoas, Antonietta e Gabriele, que se encontram casualmente naquele mesmo dia, numa Roma quase deserta, estabelecendo entre eles uma relação de simpatia e amizade. Ela, casada com um funcionário do Estado fascista e mãe de seis filhos, dona de casa frustrada e triste; ele, locutor radiofônico que acaba de ser despedido de seu trabalho. O filme nos apresenta o encontro entre duas solidões, a da mulher que vive pelo marido e pelos filhos, numa existência sem amor e sem esperança, e a do homem, que chega a confessar sua homossexualidade, motivo pelo qual perdeu seu emprego (a discriminação do militante político de esquerda, do cigano, do africano das colônias italianas e do homossexual marca a política fascista antes até da perseguição aos judeus).
    No longa, somos apresentados ainda a duas modalidades distintas de se posicionar diante da ditadura, ambas presentes no cenário histórico da Itália de então: a aceitação, em parte convencida, em parte resignada, da situação, sem muita capacidade de crítica e refém do fascínio carismático de Mussolini (Antonietta), e a oposição ao regime de certo mundo intelectual, que tenta manifestar sua insatisfação, mas não encontra formas adequadas e eficazes, e acaba sucumbindo (Gabriele). 
Cena do filme: Um dia muito especial

     O trabalho de interpretação dos atores, Sophia Loren e Marcello Mastroianni, dois astros do cinema italiano e mundial aqui em dois papeis diferentes de seus habituais registros, e a direção primorosa de Scola (que realiza no inicio do filme um magistral plano-sequencia que nos introduz na vida de Antonietta e em sua residência) tornam a película um dos pontos altos da carreira do cineasta. O diálogo constante entre as pequenas histórias dos dois protagonistas e a história pública, ‘oficial’, que se desenrola nas ruas da cidade, registrada pela voz onipresente dos aparelhos de radio que acompanham a visita de Hitler, é o verdadeiro trunfo do filme.  Aquele que na história foi ‘um dia muito especial’, por contribuir para cimentar uma relação (Hitler-Mussolini) que levará o mundo à catástrofe da guerra, se confirma tal também para aquele homem e aquela mulher: pela amizade que realiza entre os dois, pela tomada de consciência que desperta, pelas transformações que opera em suas existências. 

Concorrência desleal

Cena do filme: Concorrência desleal

     Vinte e quatro anos e dezenas de filmes depois (entre os quais não se pode esquecer “Casanova e a revolução”, ainda com Mastroianni, em 1982) Scola volta àquele ano de 1938 e àquelas temáticas com seu delicioso “Concorrência desleal” (2001). De novo Roma, de novo 1938, então, mas agora o cenário não é um apartamento, e sim uma rua, onde, lado a lado, dois comerciantes trabalham no mesmo ramo de negócios: Umberto é um alfaiate que produz trajes sob medida, Leone é dono de uma loja de roupas prontas. Entre as respectivas famílias há laços de amizades, mas é concorrência aberta entre os dois. Concorrência ‘desleal’, segundo Umberto, pois seu rival se aproveita de suas ideias comerciais para aumentar suas próprias vendas, inclusive usando de preços mais baixos. Um detalhe importante: Leone e sua família são judeus, condição que, como para a maioria dos italianos de origem judia da época, não lhe impede uma pacifica convivência com o resto da população da rua.
     Mas estamos em 1938: Mussolini está cada vez mais ligando sua política à de Hitler (aqui também há a referência à passagem do líder nazista pela cidade, no mês de maio) e a partir de setembro varias medidas legislativas atingem os judeus, desde a proibição de freqüentar escolas publicas, até o impedimento de casar com arianos. Leone e a família são atingidos, em suas vidas e negócios. Agora a ‘deslealdade’ passa para o plano humano, existencial: por que uma identidade, uma diversidade pode se tornar fonte de perseguição? Desleal é o regime que seleciona e separa, desleal é o italiano que aponta o dedo, delata e se aproveita. Scola retoma aqui o tema da discriminação do diverso que já abordou no filme de 1977.
     Ótimos interpretes, Sergio Castellitto e Diego Abbatantuono nos papeis principais, com Gérard Depardieu como o professor antifascista irmão de Umberto, e a habitual direção de Scola, capaz de alternar os timbres  da emoção e do sorriso com os do drama, levam o longa rumo ao seu epílogo: como no de 1977, o final não é dos mais felizes, mas mostra que há lições que vêm para ficar.




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