Em Habemus Papam, papa foge na hora de assumir o cargo com medo de não ser apto para liderar a Igreja. Filme faz uma leve caricatura dos bastidores do conclave e problematiza a situação da Itália hoje
“Quem sou eu, que vá a Faraó e tire do Egito os filhos de Israel?” A pergunta está na Bíblia e pertence a Moisés, em resposta ao pedido de Deus para que O ajudasse na libertação dos judeus sob a escravidão egípcia. Não é, portanto, tão surreal que o papa do Vaticano criado pelo diretor Nanni Moretti no filme “Habemus Papam” tenha dúvidas quanto às suas capacidades para dar prosseguimento à missão de Pedro, promovendo as transformações que a Igreja precisa e liderando os milhões de católicos que o enxergam como o mais legítimo representante do Senhor na terra.
Semelhantes em idade avançada, Moisés e o cardeal Melville, brilhantemente interpretado pelo simpático francês Michel Piccoli, reivindicam o tradicional ideal cristão do livre-arbítrio. A crise: separação, discernimento, julgamento. Os sentimentos confusos levam o novo papa, no filme, ao isolamento e mesmo à fuga. É a representação mais clara de um conflito que escapa ao consciente: a doutrina de fé católica não pode compreender que o Espírito Santo tenha escolhido o fiel errado.
Coerente com tal raciocínio impensável para os católicos, e surpreendente para os ateus, a telona reproduz como poucas vezes os rituais internos do conclave - nome dado ao período de votação para eleição de um novo papa. O espectador acompanha então uma rotina humana demais para ser encarada como manifestação divina: blecaute, caneta sem tinta, ausência de velas, padres que caem da cadeira, orações desesperadas para que a Graça do papado não lhe seja entregue e, por fim, a contagem da votação, em que a ingênua vaidade e o orgulho também estão presentes.
Na sequência, quando a religião declina à tarefa de compreender o mundo e não sabe como interpretar as emoções humanas e os conflitos morais que se apresentam, ela humildemente pede ajuda à ciência. O desencanto causado pela consideração razoável de uma intervenção não religiosa parece pequeno diante de um possível buraco que a ausência do papa causaria na identidade nacional italiana fortemente enraizada em tradições católicas. O próprio diretor encarna um psicanalista enviado pelas autoridades religiosas para ajudar o pontífice a entender seu dilema e, ao longo de cenas cômico-dramáticas, acaba por dissolver supostas fronteiras entre as ideologias laicas e as religiosas.
Sem garantir privilégios a uma ou outra, são expostas afinidades culturais como a valorização da instituição familiar nas explicações dos conflitos internos e nos ideais de “bem comum” ou “bem estar”, no papel preponderante para a liberdade individual e, sobretudo, a recusa atual a uma religião/cultura de simbolização rigorosamente fechada em sintonia com estereótipos de fiéis e de homens. Lado a lado, as representações religiosas e terapêuticas da humanidade e de suas perturbações compõem uma Igreja clara e profundamente responsável pela proteção da cultura, pelo diagnóstico e solução dos problemas humanos. Instalada em cada um de seus fiéis, a Igreja vive com eles o problema contemporâneo da multiplicidade, fragmentação e reconstrução das identidades individuais e coletivas.
O retrato da Itália
Talvez seja esse o caso da Itália que Nanni Moretti buscou realçar. Atingida duramente pela crise econômica que divide a União Europeia desde 2008, a ainda jovem nação assiste suas matrizes definidoras da identidade diminuírem de tamanho e importância sem que se tenha construído algo para tomar seu lugar. As longínquas raízes culturais da civilização grega e do Império Romano historicamente utilizadas como elementos para fermentação de um sentimento de pertencimento mostram-se frágeis diante da perda da liderança econômica, do avanço da promiscuidade política e da invasão do público pelo privado, bem como conhecemos aqui no Brasil.
Fragmentos do nacionalismo mais agressivo construído pelo fascismo dos anos 1920 e 30 sucumbem com a fuga das empresas mais importantes do país. Mesmo o orgulho cultural consagrado, entre outros, pelo sucesso mundial do cinema de Pasolini, Visconti e Fellini, declina perante uma dívida pública de mais de 1,9 trilhão de euros, e cortes sucessivos nos gastos com a cultura. Na moda, Milão não é mais relevante como é Londres, Paris ou Nova York, e na literatura, Umberto Eco parece cada vez mais solitário na defesa das conquistas de uma Europa em paz há apenas 60 anos.
Por fim, o grande símbolo da missão universal do catolicismo italiano representado pelo Vaticano em Roma perde espaço no campo nacional e internacional para religiões evangélicas, islâmicas, entre outras. Ao mesmo tempo, a extrema direita cresce na França, Suécia, Finlândia, e Hungria estimulando o preconceito e a xenofobia que marcaram violentamente a história recente da Europa. Não sem razão, aos milhões que aguardam a saudação pública do papa, o diretor italiano de Habemus Papam reserva um imenso vazio. Ao que tudo indica, a idéia mais improvável se constituiu em representação identitária crítica e, por que não, real.
É preciso ainda mencionar a importante citação de Tchékhov através da peça “A gaivota” em cuja encenação o papa foragido se encontra com suas memórias. A falta de talento para ser ator durante a juventude o ajuda a compreender a incapacidade para se tornar a Santidade que o público espera ver atrás das cortinas. O teatro surge como o campo no qual foi possível intercambiar os tempos históricos permeados de feridas e frustrações que precisam ser resolvidas, espaço no qual a arte de contar os fatos da vida cotidiana ou mesmo as ficções, encontram as estruturas apropriadas da linguagem, da narrativa, da elaboração e transformam-se em História. Contudo, compreender este processo implica no desmantelamento de uma ideia há muito enraizada, que vê no futuro o único tempo aberto e indeterminado e omite a capacidade que o antigo possui de ser atualizado, de ser reinterpretado a ponto de influenciar decisivamente os nossos sonhos e as nossas vinganças.
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