A sinfonia dos canhões
Dez batalhas. Não necessariamente as mais sangrentas ou as mais conhecidas. Os eventos descritos em série foram escolhidos por terem sido decisivos para a formação do Brasil.
Aqui estarão narradas lutas travadas no campo - ou no rio, como em Humaitá - e até a tomada de Monte Castello, que nem foi propriamente uma batalha. Também estão presentes as vozes do combatente e da testemunha, que fazem o passado parecer vivo, ironicamente em um tempo de destruição e morte.
Com ou sem vitória, esses confrontos tiveram seu papel na construção da história nacional, que também é feito de pólvora, chumbo e sangue.
Guararapes na arte figurativa. Cadmo Fausto (1940) retrata a segunda batalha.
A TOQUE DE CAIXAS
Entre o pântano e os Montes Guararapes, os luso-brasileiros puseram um ponto final no sonho holandês nos trópicos.
Não seria inadequado afirmar que, entre os episódios mais debatidos da História do Brasil, as batalhas dos Guararapes ocupam um lugar especial. De acordo com o que escreveu Diogo Lopes Santiago na época, no momento em que as caixas e as trombetas anunciaram a segunda batalha, “parecia que o ar e o vento paravam e se suspendiam”. Mas fatos ainda mais extraordinários estiveram por trás dos embates que colocaram as tropas neerlandesas contra as luso-brasileiras na antiga capitania de Pernambuco. Nelas, uma milícia basicamente local – e não nacional – derrotou um dos exércitos mais bem treinados do mundo ocidental.
Tudo começou quando os holandeses desembarcaram em Pernambuco no ano de 1630, em nome da Companhia das Índias Ocidentais (WIC), e foram aos poucos ocupando a costa que ia da foz do Rio São Francisco ao Maranhão, no atual Nordeste brasileiro. Eles chegaram ao ponto de destruir Olinda, antiga sede da capitania de Duarte Coelho, para erguer no Recife uma pequena Amsterdã.
O sonho urbano holandês no Brasil encontrou sua expressão máxima na construção da Cidade Maurícia (Mauriitzstad) durante o governo de Maurício de Nassau (1637-1644). No entanto, mesmo com o aumento da produção de açúcar e do comércio de escravos, a população católica sob o domínio batavo guardava muito ressentimento, endividava-se com a Companhia e, mais do que isso, via sua terra ser “profanada” com práticas judaizantes e calvinistas.
Depois que Maurício de Nassau voltou para os Países Baixos, a situação começou a ficar insustentável. Ainda que envolvido por problemas em sua administração, ele tinha, pelo menos, um espírito conciliador. Sua figura de nobre da Casa de Orange-Nassau caía como uma luva no imaginário luso-brasileiro, cuja carência de rei durava desde que D. Sebastião morrera nas areias do deserto norte-africano no século XVI. Mas o Alto Conselho que sucedeu a Nassau na administração do Brasil não tinha o mesmo brilho. Seus membros não passavam de comerciantes sem nobreza que só faziam alimentar o desafeto da população local.
Foi nessa conjuntura que nasceu a resistência pernambucana que culminou com a saída dos holandeses do Brasil em fevereiro de 1654. Às vésperas da primeira batalha dos Guararapes, em 1648, os exércitos luso-brasileiros, comandados por João Fernandes Vieira, Vidal de Negreiros, Henrique Dias e o índio Filipe Camarão, já contavam com um bom suprimento de carne bovina vindo da região do Jaguaribe (Ceará), do sertão do São Francisco e do Rio Grande do Norte. Os holandeses, ao contrário, viviam uma situação de penúria dentro dos limites do Recife.
O cronista Diogo Lopes Santiago foi um dos primeiros a mitificar o local dos combates ao afirmar que “é para notar que este nome Guararapes, no idioma e língua dos índios, quer dizer tambor ou atabaque, que parece que foi o nome e etimologia que lhe foi posto, como presságio dos muitos tambores e caixas, e instrumentos militares que neles se tocaram nestas batalhas, que quase quer dizer monte guerreiro e nós lhe podemos chamar vitorioso”.
A primeira batalha que colocou os luso-brasileiros – cujo “mestre de campo” era o general Barreto de Menezes – contra os holandeses de Sigismundo van Sckoppe, ocorreu no dia 19 de abril de 1648. Espremidas entre os pântanos e os Montes Guararapes, ao sul do Recife, as tropas comandadas por Vieira, Camarão, Henrique Dias e Vidal conseguiram derrotar exércitos chefiados por alguns oficiais como Van Elst e Hous, que, a essa altura, já eram bem conhecidos dos portugueses. As forças luso-brasileiras tinham aproximadamente 2.200 combatentes divididos em três flancos. No final, devido a uma manobra de astúcia e bravura de Vidal de Negreiros, atacando o inimigo pela retaguarda, os holandeses tiveram mais de 500 mortos e um número semelhante de feridos. Nesse momento da guerra, muitos soldados da WIC desertaram, fugiram para o mato e abandonaram o sonho ingênuo de recomeçar uma vida nos trópicos.
A segunda batalha dos Guararapes, travada em 19 de fevereiro de 1649, acabou de vez com o moral das tropas invasoras, cinco anos antes do fim definitivo do domínio holandês. Mesmo enfrentando 6.000 oponentes, os luso-brasileiros, talvez em número de 2.000, saíram novamente vitoriosos, matando centenas e ferindo gravemente mais de 700 soldados e oficiais a serviço da Companhia.
A própria natureza do terreno favoreceu a guerra aberta. No entanto, em algumas matas e nas proximidades dos Montes Guararapes, a tática de guerrilha fora bastante utilizada. Vencer o inimigo não foi tão fácil porque os holandeses já haviam aprendido esta forma de lutar quase vinte anos antes, no Brasil. Além disso, desde 1630 eles estavam acompanhados dos nativos em qualquer escaramuça. Neste segundo enfrentamento, os holandeses ocuparam o alto dos montes e os desfiladeiros. Do lado luso-brasileiro, o mestre de campo Barreto de Menezes marchou com suas tropas para o local e procurou cercar as tropas batavas ocupando as várzeas dos canaviais ao redor. Na noite que antecedeu o combate, as tropas neerlandesas mal haviam descansado, enquanto os da terra haviam repousado sob a proteção dos manguezais. Nesse ponto, souberam tirar proveito do terreno.
As batalhas dos Guararapes tiveram uma importância capital não só para a história de Pernambuco, mas também para a das Forças Armadas, pelo simples fato de nelas terem combatido, lado a lado, índios, negros e brancos, ainda que numa relação muito bem definida de hierarquia. Nesses enfrentamentos, forjou-se um certo espírito de corpo, elemento indispensável a qualquer grupamento militar.
Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional.
Por: Rômulo Luiz Xavier do Nascimento é professor da Universidade de Pernambuco e autor de O desconforto da governabilidade: Aspectos da Administração no Brasil holandês (UFF, 2008).
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