domingo, 27 de maio de 2012

DOSSIÊ - EM QUESTÃO DE MINUTOS

A sinfonia dos canhões
Dez batalhas. Não necessariamente as mais sangrentas ou as mais conhecidas. Os eventos descritos a seguir foram escolhidos por terem sido decisivos para a formação do Brasil.
Aqui estão narradas lutas travadas no campo - ou no rio, como em Humaitá - e até a tomada de Monte Castello, que nem foi propriamente uma batalha. Também estão presentes as vozes do combate e da testemunha, que fazem o passado parecer vivo, ironicamente em um tempo de destruição e morte.
Com ou sem vitória, esses confrontos tiveram seu papel na construção da história nacional, que também é feita de pólvora, chumbo e sangue.

EM QUESTÃO DE MINUTOS
A batalha de Caiboaté resultou num massacre de proporções gigantescas com requintes de crueldade.
Planta do acampamento do exército luso-brasileiro em 1755, durante a marcha de São Gonçalo para o território das Missões.
     Quando o coronel José Custódio de Sá e Faria escreveu em seu diário, no dia 10 de fevereiro de 1756, que “fazia grande compaixão a multidão de mortos”, uma das maiores barbáries do século XVIII no território brasileiro havia acabado de acontecer no atual município de São Gabriel (RS). As tropas coligadas de Portugal e Espanha, que reuniam 4.000 homens, haviam massacrado cerca de 1.500 índios das missões jesuíticas. A carnificina foi tanta que, em pouco mais de uma hora, quase todos os nativos estavam estirados no campo, empapados pelo lodo formado pelo sangue e pela gosma da bosta dos cavalos. Os dois lados haviam participado da batalha de Caiboaté.
     Esse embate foi o mais importante da Guerra Guaranítica, que teve início em 1753, quando índios e caciques se insurgiram contra a mudança de governo de suas terras. Localizadas na margem oriental do Rio Uruguai, os Sete Povos das Missões pertenciam à Espanha, mas com o Tratado de Madri (1750), passariam para o domínio dos portugueses. Os 30.000 índios deveriam abandoná-las, perdendo cidades, gado, lavouras e ervais, e transmigrar para o lado ocidental do Rio Uruguai e para o sul do Rio Ibicuí, possessões castelhanas. Nos Sete Povos seriam instalados colonos açorianos.
     O governador de Buenos Aires na ocasião, José de Andonaegui, comandava o exército espanhol-platino; Gomes Freire de Andrada, governador do Rio de Janeiro, o luso-brasileiro. Em março de 1754, os dois se reuniram na Ilha de Martin Garcia, no Rio da Prata, com o comissário espanhol, marquês de Valdelírios, para tratar da união de suas tropas.
     A coligação das forças de Portugal e da Espanha se concretizou nas cabeceiras do Rio Negro no final de 1755. O exército castelhano tinha 1.670 homens. Apenas 470 eram militares de carreira. O restante havia sido arregimentado entre os gaudérios, os bandidos e ladrões de campo – “milicianos a soldo” –, sendo que centenas deles eram patrocinados por latifundiários e comerciantes que estavam interessados no saque das Missões. Cerca de 500 peões haviam sido contratados para tocar 200 carretas, 7.000 cavalos, 800 mulas e 6.000 animais para abate. Já o poderoso exército luso-brasileiro era formado por 1.606 praças e seus oficiais, além de 250 negros escravos dos militares, particulares e comerciantes. Vinha com 152 carretas, 14 carros para a munição e outros apetrechos de guerra, três carros de pólvora, 3.760 cavalos, 2.823 reses para o sustento da tropa, 1.816 bois de tração para os carros e carretas, 221 mulas cargueiras, sete canhões de bronze e três canhõezinhos de calibre número um.
     Para obter alguma vantagem no confronto, as tropas coligadas se valeram de 200 aventureiros mamelucos de tradição bandeirante, arregimentados na capitania de São Paulo, que seguiam na frente, preferencialmente pelos matos e margens dos rios. Eles andavam por vias nas quais os cavalos não conseguiam transitar, a fim de sondar o terreno para que o exército luso-espanhol pudesse avançar. Afinal, o pesado trem de guerra ibérico só poderia transitar pela “estrada das Missões”, cujo trajeto sinuoso passava perto das nascentes dos rios afluentes das bacias do Uruguai e do Jacuí. A retaguarda dos exércitos reunidos era protegida por cerca de 200 índios minuanos – índios pampianos, nômades e cavaleiros, que haviam perdido parte de seu território para os guaranis e, depois, para o sistema jesuítico.
     O primeiro embate entre os dois lados ocorreu no dia 7 de fevereiro de 1756, quando Sepé Tiaraju, índio das Missões e corregedor de São Miguel, foi morto no território da atual cidade de São Gabriel. Três dias depois, o corregedor de Concepción, Nicolau Neenguiru, que comandava os índios missionários, resolveu improvisar e posicionar suas tropas em meia-lua na localidade de Caiboaté. Mal começou o combate, os missioneiros foram atacados de frente pela Artilharia e pela Infantaria das tropas e envolvidos pela Cavalaria que vinha dos dois flancos.
     O massacre durou apenas uma hora e quinze minutos. Mais do que isso, o modo como os derrotados foram executados transformou a batalha de Caiboaté numa verdadeira chacina. Os gaudérios e os dragões – militares da Cavalaria –, especialmente, vararam os derrotados com suas lanças, passaram-lhes a espada e os degolaram com adagas, ignorando os pedidos desesperados de clemência. Não se sabe exatamente quantas vítimas fatais teve o embate, mas testemunhas militares calcularam os mortos indígenas entre 1.200 a 1.723 – sendo que 150 foram feitos prisioneiros. Para Andonaegui, houve 1.511 do lado do inimigo, enquanto Freire os calculou em 1.500. O exército espanhol perdeu três homens e teve dez feridos. O português, um morto e 30 feridos. Em maio, as tropas coloniais ocuparam os Sete Povos das Missões.
     No futuro, o modo gaudério do combatente dos pampas produziria as páginas sanguinárias das guerras de fronteira e civis do Rio Grande do Sul, e estaria a serviço da República em Canudos (1897), quando os seguidores de Antônio Conselheiro seriam abatidos como gado em uma “charqueada”, segundo expressão de Euclides da Cunha. É dessa tradição que vem o culto gauchesco da valentia, do guerreiro, do imaginário gentílico do sulino.
     O Tratado de Madri, por sua vez, foi anulado pelo Convênio do Pardo (1761). Tudo por conta da dificuldade de transladar as famílias indígenas e das divergências entre os comissários demarcadores das fronteiras. E o território dos Sete Povos das Missões, após a expulsão dos jesuítas, passou a ser administrado por funcionários públicos da Coroa espanhola e incorporado aos domínios de Portugal em outra guerra entre os reinos em 1801. A destruição do projeto missioneiro pôs fim a uma sociedade baseada na propriedade do povo, formando multidões que perderam suas riquezas milenares. Aos poucos, por meio da mestiçagem, os índios acabaram contribuindo para a formação do povo rio-grandense.
O que resta hoje da Igreja de São Miguel Arcanjo. É o testemunho de um projeto destruído pela violência da Guerra Guaranítica.

Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional
Por: Tau Goliné professor da Faculdade de Artes e Comunicação da Universidade de Passo Fundo (RS) e autor de A guerra guaranítica – Como os exércitos de Portugal e Espanha destruíram os Sete Povos dos jesuítas e índios guaranis no Rio Grande do Sul (1750-1761) (UPF Editora, 1998).


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