domingo, 27 de maio de 2012

DOSSIÊ - EMBARCAÇÕES BLINDADAS


A sinfonia dos canhões
Dez batalhas. Não necessariamente as mais sangrentas ou as mais conhecidas. Os eventos descritos a seguir foram escolhidos por terem sido decisivos para a formação do Brasil.
Aqui estão narradas lutas travadas no campo - ou no rio, como em Humaitá - e até a tomada de Monte Castello, que nem foi propriamente uma batalha. Também estão presentes as vozes do combate e da testemunha, que fazem o passado parecer vivo, ironicamente em um tempo de destruição e morte.
Com ou sem vitória, esses confrontos tiveram seu papel na construção da história nacional, que também é feita de pólvora, chumbo e sangue.

EMBARCAÇÕES BLINDADAS

Na Guerra do Paraguai, ultrapassar a Fortaleza de Humaitá não era nada fácil. Para isso, as tropas aliadas usaram navios poderosos


Concluída poucos anos depois do episódio, "Passagem do Humaitá" (1868-72), tela de Victor Meirelles, celebra o feito da esquadra brasileira. - Museu Histórico Nacional / IBRAM / MINC / Photo Síntese

     Disputas por território e pela livre navegação na região do Pratalevaram o Império do Brasil, a Argentina e o Uruguai a enfrentar a República do Paraguai na Guerra da Tríplice Aliança (1865-1870) – mais conhecida como Guerra do Paraguai. A área onde se deram os embates era muito pantanosa e cortada por rios de difícil navegação para navios de grande porte. No Rio Paraguai, o principal da região, os paraguaios montaram um sistema defensivo baseado numa série de fortalezas, e a de Humaitá era a mais poderosa. A maioria das embarcações de guerra do Império era inadequada para enfrentar aqueles obstáculos naturais e militares, o que exigiu um rápido desenvolvimento da tecnologia naval brasileira. O auge desse processo foi a fabricação de um novo tipo de navio.
     No século XIX, a construção naval havia sido impulsionada pela Revolução Industrial. Em pouco mais de meio século, rápidas transformações resultaram em novos navios de guerra, como o Monitor, que foi usado pela primeira vez durante a Guerra de Secessão dos Estados Unidos (1861-1865). Ele tinha casco de madeira revestido de couraça de ferro, uma torre giratória com dois canhões, e ficava pouco exposto acima da linha d’água, o que o tornava um alvo difícil para os inimigos.
     O almirante Joaquim José Ignácio (1808-1869), então ministro da Marinha e futuro barão e visconde de Inhaúma, defendeu a aquisição desse tipo de embarcação em um relatório do Ministério da Marinha apresentado ao Parlamento em 1862. Curiosamente, foi ele mesmo quem empregou pela primeira vez aquele tipo de navio em favor do Brasil anos depois. Em dezembro de 1866, Inácio substituiu oentão visconde de Tamandaré, almirante Joaquim Marques Lisboa (1807-1897), no comando das forças navais brasileiras, quando já havia uma convicção de que a Fortaleza de Humaitá era vulnerável aos navios encouraçados. Tamandaré estava certo de que o general Francisco Solano López, presidente paraguaio, temia a esquadra brasileira porque sabia “que o seu famoso baluarte de Humaitá” não poderia “resistir a um ataque de navios encouraçados”.
     Inspirada no projeto norte-americano, a Marinha brasileira incorporou à sua frota seis monitores, todos construídos no Arsenal da Corte, sob a direção de Napoleão Level, o maior engenheiro naval da época. Três deles – o Pará, o Rio Grande e oAlagoas – foram utilizados para transpor a fortaleza paraguaia, muito em função de suas couraças, de seus sistemas de armamento e, principalmente, por serem rasos. Essas características facilitavam a superação de qualquer obstáculo.
     As tropas aliadas chegaram a Tagy, acima de Humaitá, em setembro de 1867. Dez encouraçados brasileiros já haviam transposto a Fortaleza de Curupaiti em agosto, e ficaram seis meses estacionados entre essa fortificação e Humaitá, numa posição muito delicada. A dificuldade para se obter suprimentos e a vulnerabilidade aos ataques paraguaios na região eram motivos de preocupação.
     Mesmo pressionado para avançar sobre Humaitá, o almirante Joaquim José Ignácio preferiu aguardar a chegada dos monitores. A oportunidade veio em fevereiro de 1868, com a subida do nível do rio, a destruição de algumas barcaças que sustentavam correntes de ferro que atravessavam o Rio Paraguai e o próprio desgaste da fortaleza, ocasionado pelos frequentes bombardeios da esquadra. Os monitores, que chegaram à frente de combate em dezembro de 1867, ultrapassaram Curupaiti em 13 de fevereiro de 1868 e logo se juntaram aos encouraçados.
     A operação teve início na madrugada do dia 19 de fevereiro, quando uma divisão naval comandada pelo capitão de mar e guerra Delfim Carlos de Carvalho, formada pelos encouraçados BarrosoBahia e Tamandaré e pelos três referidos monitores, investiu sobre Humaitá. O feito da Marinha imperial seria exaltado ao longo dos anos seguintes, como demonstra o depoimento do veterano de guerra José Francisco da Conceição registrado na Revista Marítima Brasileira, em 1882: “Uma pequena parte da então pujante armada nacional forçou as poderosas baterias de Humaytá, até ahi reputadas como inexpugnáveis e conhecidas sob a designação de Gibraltar da América do Sul, tal era a confiança que por sua posição e seu armamento inspirava aos seus defensores e ao estrangeiro que via esse importante ponto estratégico”.
O monitor Alagoas, construído no Arsenal da Corte, como outros cinco similares. Pouco exposto acima da linha d'água, o navio era um alvo difícil para os inimigos.


    Mas, no meio da chuva de fogo em que se transformou a batalha, ocorreram alguns contratempos. O encouraçado Bahia, desgovernado, chegou a abalroar o Tamandaré e o Pará, que ficaram bastante danificados, mas prosseguiram em sua missão. O cabo de reboque que mantinha unidos o Bahia e o Alagoas foi partido por uma mina, fazendo com que o monitor, com a força da correnteza que o arrastava rio abaixo, tivesse que avançar solitário, por cinco vezes, contra o fogo concentrado de Humaitá. O Alagoas, o Tamandaré e o Barroso chegaram a ter que encalhar para não afundar. Pouco depois, assim que superou um fogo cruzado em Timbó, a frota brasileira se encontrou com a tropa aliada em Tagy, completando o cerco à fortaleza paraguaia. A conquista definitiva da posição se deu em julho de 1868.
     A Guerra da Tríplice Aliança deixou lembranças mais ligadas às memórias institucionais militares, manifestadas em efemérides e solenidades. Mas a ultrapassagem de Humaitá foi representada na pintura e na historiografia militar, por mais de um século, como uma grande epopeia, digna de ocupar o rol das proezas homéricas.  

Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional
Por: Renato Restier é historiador e pesquisador do Departamento de História da Diretoria do Patrimônio Histórico e Documentação da Marinha e do Núcleo de Estudos e Pesquisas em História Militar do Instituto de Geografia e História Militar do Brasil (IGHMB).

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