domingo, 27 de maio de 2012

DOSSIÊ - ENTRE FOICES E FACÕES


A sinfonia dos canhões
Dez batalhas. Não necessariamente as mais sangrentas ou as mais conhecidas. Os eventos descritos a seguir foram escolhidos por terem sido decisivos para a formação do Brasil.
Aqui estão narradas lutas travadas no campo - ou no rio, como em Humaitá - e até a tomada de Monte Castello, que nem foi propriamente uma batalha. Também estão presentes as vozes do combate e da testemunha, que fazem o passado parecer vivo, ironicamente em um tempo de destruição e morte.
Com ou sem vitória, esses confrontos tiveram seu papel na construção da história nacional, que também é feita de pólvora, chumbo e sangue.

ENTRE FOICES E FACÕES

Apesar de derrotado na batalha do Jenipapo, o exército de sertanejos libertou três províncias nordestinas.

     Conflitos nos quais forças muito bem armadas enfrentam outras em condições desiguais não são novidade. A batalha do Jenipapo, no Piauí, foi um desses. Embora tenha ocorrido num único dia – 13 de março de 1823 –, junto do riacho Jenipapo, na vila de Campo Maior, o confronto foi dos mais violentos. E também teve um papel importante para garantir a Independência e manter a unidade política do Brasil[Ver RHBN nº 58]. Após o 7 de setembro, que obteve a independência da Região Sul, a Corte portuguesa pretendia assegurar pelo menos a parte norte do Brasil como Colônia.
Ilustração de Renato Alarcão

     A batalha foi o resultado de embates entre o poder português e a população sertaneja piauiense, que se uniu a cearenses e maranhenses a fim de expulsar do Piauí o major João José da Cunha Fidié (?-1856), comandante das Armas e governador da capitania. Fidié havia sido enviado pelo rei de Portugal, D. João VI, para garantir a manutenção do sistema colonial e impedir a Independência.
     A participação da população foi uma marca dessa batalha. Mais de 2.000 sertanejos de todas as classes sociais – fazendeiros, oficiais militares, vaqueiros, lavradores, artesãos, escravos, roceiros – formaram uma multidão de voluntários armados de instrumentos do trabalho na roça e de caçadas, além dos domésticos e agrícolas, como facões, enxadas, foices, machados. As mulheres também ajudaram, arrecadando fundos para reunir um exército guerrilheiro. Do outro lado, as tropas portuguesas, comandadas pelo major Fidié, eram compostas, em sua maioria, de mercenários, somando entre 1.600 a 1.800 homens de Cavalaria, Fuzilaria, Infantaria, disciplinados e treinados, bem equipados e armados, com 11 peças de artilharia, um canhão e lançadoras de granadas.
     O experiente major, que havia lutado contra as tropas de Napoleão na invasão de Portugal em 1807, voltava de Parnaíba, no litoral do Piauí, onde causara pânico devido à violenta repressão ao movimento de adesão ao grito do Ipiranga. Ao saber que os revoltosos se concentravam no município de Campo Maior, utilizou uma estratégia fatal contra eles: enviou um grupo de vanguarda que os guerrilheiros acreditavam ser o exército inimigo inteiro, e por isso atacaram com todas as forças. Esse primeiro combate, conhecido como “batalha do Jacaré”, foi seguido pelo confronto em outro riacho. Às margens do Jenipapo, o embate foi terrível e brutal, corpo a corpo, das nove da manhã às duas da tarde sem nenhuma interrupção, e foi marcado por cenas de extrema violência de ambos os lados. O confronto foi corpo a corpo, com combatentes degolados de ambos os lados, luta corporal, pisoteamento pelos cavalos das tropas de Fidié, feridos se contorcendo de dor, mortos espalhados pelo campo de batalha, sem serem enterrados.
     Ao final da luta, o cenário da batalha ficou repleto de armas, munições, peças de artilharia, mortos e feridos de ambos os lados. O número de baixas não é preciso porque não houve contagem. Do lado português, foram  aproximadamente 60 feridos e cerca de 20 mortos, e não houve prisioneiros; do lado dos brasileiros, em torno de 500 prisioneiros e mais de 200 mortos e feridos. Fidié enterrou alguns dos seus mortos logo depois, em cinco sepulturas, mas muitos foram deixados a céu aberto.
Devido ao seu poderoso exército, o major ganhou a batalha, mas perdeu a guerra da independência graças às táticas de guerrilha dos sertanejos: após o combate do Jenipapo, num assalto de surpresa ao acampamento militar, eles se apoderaram dos armamentos e da munição, de dinheiro e bagagem do comandante português, e cercaram o caminho para Oeiras, a capital da província, que já tinha aderido à Independência no mês de janeiro.
  Diante dessa situação e enfrentando deserções constantes, que reduziram consideravelmente suas tropas, o major Fidié se viu forçado a se retirar do Piauí. Levantou acampamento e atravessou o Rio Parnaíba para o Maranhão, refugiando-se na cidade de Caxias, onde buscou reforços militares e recursos financeiros. O Maranhão foi literalmente invadido, e após 15 dias de um audacioso cerco à cidade de Caxias pelas forças independentes de aproximadamente 6.000 homens do Piauí, do Maranhão e do Ceará, ocorreu o combate no Morro das Tabocas, com a rendição do major Fidié, faminto e desarmado. Preso, foi enviado para o Rio de Janeiro e depois para Portugal, onde foi recebido como herói. A oficialização da independência do Piauí, do Ceará e do Maranhão ocorreu em 6 de agosto de 1823, por uma Junta Militar das três capitanias.
      Na memória dos piauienses, a batalha do Jenipapo é o mais notável episódio das lutas no Piauí pela independência do Brasil. Diferentes autores traçam um relato heroico e patriótico, às vezes romântico, gerando um conhecimento quase imutável de que houve uma epopeia na luta pela independência, a ponto da data de 13 de março ter se tornado feriado estadual. Nos 150 anos do evento, em 1973, foi construído o Monumento do Jenipapo no local da batalha, onde a multidão sem rosto recebeu homenagens em placas, além de ter sido reconstituído um cemitério.
     Até hoje, o lugar é usado pelos governos estadual e municipal de Campo Maior em solenidades comemorativas, com a distribuição de  medalhas, honrarias e comendas. Recentemente, a data foi inserida na bandeira do Estado, e outro monumento foi erguido próximo ao local do combate. Após tanto tem no esquecimento, há uma movimentação no Congresso Nacional para que a batalha do Jenipapo seja introduzida nos livros didáticos de História do Brasil.


Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional
Por: Claudete Maria Miranda Dias é professora doutora aposentada da Universidade Federal do Piauí (UFPI) e autora de Balaios e bem-te-vis: a guerrilha sertaneja (Instituto Dom Barreto, 2002).

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