domingo, 27 de maio de 2012

DOSSIÊ - DERROTA NAS ENTRELINHAS


A sinfonia dos canhões
Dez batalhas. Não necessariamente as mais sangrentas ou as mais conhecidas. Os eventos descritos a seguir foram escolhidos por terem sido decisivos para a formação do Brasil.
Aqui estão narradas lutas travadas no campo - ou no rio, como em Humaitá - e até a tomada de Monte Castello, que nem foi propriamente uma batalha. Também estão presentes as vozes do combate e da testemunha, que fazem o passado parecer vivo, ironicamente em um tempo de destruição e morte.
Com ou sem vitória, esses confrontos tiveram seu papel na construção da história nacional, que também é feita de pólvora, chumbo e sangue.

DERROTA NAS ENTRELINHAS
Há fortes indícios de que o desfecho da batalha de Porongos foi causado por um ofício forjado de Caxias

     A Revolução Farroupilha, que teve início em 1835, foi uma grave ameaça para o Império, pois sua proposta republicana separatista punha em risco a integridade nacional. Além dessa questão política delicada, reprimir a rebelião foi uma tarefa difícil para o Império – os rebeldes controlaram boa parte da província gaúcha, sitiando Porto Alegre e chegando até Santa Catarina. Mas de todos os eventos ligados à rebelião, a batalha de Porongos, travada em 14 de novembro de 1844 perto de Bagé (RS), foi um dos que mais se destacaram. Curiosamente, a importância desse embate é maior hoje do que foi na época da guerra [Ver RHBN nº 58].
     Desde o começo do movimento farroupilha, a natureza da luta favorecia os rebeldes. O movimento das forças montadas dos gaúchos nas planícies do pampa era difícil de ser controlado pela infantaria do Império. Já os revolucionários, por se identificarem com a causa, estavam mais motivados, e, entre eles, um grupo chamava a atenção por sua coragem e valor: a cavalaria negra comandada pelo coronel Teixeira Nunes. Ela era formada por libertos, que desejavam mudanças sociais, e por escravos, que seriam alforriados após a participação na luta.
     Depois de ter conseguido reprimir revoltas anteriores em outras províncias, Luís Alves de Lima e Silva (1803-1880), então barão de Caxias, foi nomeado comandante das forças da legalidade em 1843. Ao realizar uma campanha para isolar os rebeldes dos pontos de abastecimento, ele colocou os farrapos em permanente fuga, tornando sua situação insustentável. Negociações de paz começaram a ser feitas, mas, antes do acordo, o Império ainda enfrentaria a última força farroupilha considerável, que contava com cerca de 600 combatentes, sob o comando do general David Canabarro (1796-1867), acampados no Serro de Porongos. Para o embate, Caxias enviou um destacamento de 1.120 homens sob o comando do coronel Francisco Pedro, que surpreendeu os farroupilhas à noite. Sem conseguir montar uma resistência efetiva, 100 rebeldes foram mortos e 333 tornaram-se prisioneiros. Os remanescentes do exército debandaram e a última grande força organizada dos farroupilhas deixou de existir. Já as perdas legalistas foram desprezíveis: apenas quatro feridos.
Lanceiro da Cavalaria Negra

     Se as negociações de paz já haviam sido iniciadas, por que esse combate veio a se tornar tão importante? Muitos acreditam que o inexplicável resultado da batalha foi o que ela teve de mais excepcional. O próprio Caxias escreveria que ali tinha sido a primeira vez que Canabarro fora surpreendido, o que antes parecia impossível, dada a sua “incansável vigilância”. Mas pode ser que a razão seja outra. Suspeita-se que o general farroupilha tinha conspirado para encerrar a rebelião, dúvida que surge de ofício de Caxias de 9 de novembro, que teria sido forjado pelo coronel Francisco Pedro para incriminar o líder farroupilha. “Não receie a infantaria inimiga, pois ela há de receber ordem de um ministro e de seu general em chefe, para entregar o cartuchame”, teria dito Caxias no documento, que ainda explicava o que Canabarro deveria fazer para escapar ileso. Oficialmente, a ideia de Francisco Pedro era fazer circular o documento forjado para desmoralizar o inimigo e impedir a continuação da luta. Com a paz de Poncho Verde, em 1º de março de 1845, esse objetivo foi alcançado.
     Historiadores mais tradicionalistas, que veem Caxias como o maior herói do Exército, negam a veracidade do complô. Mesmo assim, a batalha tem aspectos suspeitos, como a falta de alerta dos rebeldes ou o fato de que havia sido ordenado o recolhimento da munição da infantaria farroupilha, inviabilizando sua resistência. Canabarro conseguiu escapar, e a rebelião, em termos práticos, acabou tal como estava previsto no ofício.
     Independentemente das maquinações entre os comandantes para obter a paz, o ofício de Caxias ainda conteria uma passagem que hoje é lembrada pelo movimento negro: “No conflito, poupe o sangue brasileiro quanto puder, principalmente da gente branca da província ou índios, pois bem sabe que essa pobre gente ainda pode ser útil no futuro”. Não é possível determinar se o documento é verdadeiro, mas isso não importa. A Revolução Farroupilha foi uma das muitas lutas em que os escravos buscaram meios de melhorar sua situação e provar que eram valorosos como qualquer homem livre. Com a paz estabelecida, ficou determinado que não haveria recrutamento forçado para os soldados republicanos e que todos os ex-escravos combatentes e os prisioneiros seriam libertados.
Um destacamento do exército imperial sob o comando do coronel Francisco Pedro, surpreendeu os farroupilhas, que não conseguiram montar uma resistência efetiva. (Ilustração Renato Alarcão)

     Mas não foi isso que aconteceu. Logo em seguida, 120 lanceiros negros foram recrutados à força para a Cavalaria do Império e tiveram que enfrentar uma situação de semicativeiro. De acordo com um ofício de 1857, o diretor do Arsenal do Rio de Janeiro chegou a perguntar ao ministro como deveria atuar no caso do “preto Antônio Simões”, que havia sido “liberto e do número daqueles que vieram do Rio Grande do Sul por tomarem parte na Rebelião que ali houve”. Foi então autorizado o uso de castigos corporais contra Simões, tal como se fazia com os outros escravos. Por conta de fatos como esse, a batalha de Porongos acabou se tornando um símbolo do modo como a sociedade do Império tratava os negros – negando até mesmo os direitos básicos e renegando promessas feitas anteriormente. Hoje, há um movimento pelo reconhecimento do embate como um importante momento da trajetória das lutas raciais que propõe o tombamento do local do conflito como patrimônio histórico nacional.

Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional
Por: Adler Homero Fonseca de Castro é pesquisador do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

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