domingo, 27 de maio de 2012

DOSSIÊ - ERRO VITORIOSO


A sinfonia dos canhões
Dez batalhas. Não necessariamente as mais sangrentas ou as mais conhecidas. Os eventos descritos a seguir foram escolhidos por terem sido decisivos para a formação do Brasil.
Aqui estão narradas lutas travadas no campo - ou no rio, como em Humaitá - e até a tomada de Monte Castello, que nem foi propriamente uma batalha. Também estão presentes as vozes do combate e da testemunha, que fazem o passado parecer vivo, ironicamente em um tempo de destruição e morte.
Com ou sem vitória, esses confrontos tiveram seu papel na construção da história nacional, que também é feita de pólvora, chumbo e sangue.


ERRO VITORIOSO
Os brasileiros estavam em desvantagem na batalha do Pirajá. Mas o corneteiro, em vez de tocar a retirada, mandou a tropa avançar à degola.

Os baianos levaram 18 meses para conquistar a Independência. Desde os primeiros conflitos entre patriotas e tropas portuguesas em Salvador, em fevereiro de 1822, até a retirada destas em julho de 1823, a Bahia foi palco de muitas lutas. Houve poucos embates de peso, mas inúmeros pequenos combates. A batalha de Pirajá, travada no dia 8 de novembro de 1822, foi a maior da guerra e a primeira grande vitória brasileira.
O contexto político era bastante complicado. As tropas portuguesas, comandadas pelo tenente-coronel Luiz Inácio Madeira de Melo (1775-1833), controlavam a capital baiana desde fevereiro de 1822. Pouco tempo depois, em junho e julho, as vilas do Recôncavo aclamaram a regência de D. Pedro. Milicianos sob o comando de Joaquim Pires de Carvalho e Albuquerque, o futuro visconde de Pirajá (1788-1848), obstruíram a Estrada das Boiadas, o acesso principal à cidade. O alto de Pirajá, pelo qual passava a via, dominava a região e foi escolhido para o acampamento brasileiro, a chave da linha, que aos poucos fechava o cerco de Salvador.
Logo que se tornou imperador, D. Pedro I ordenou em vão que Madeira de Melo se retirasse de Salvador. Para ajudar os patriotas baianos, o monarca mandou armas, munição e tropas, comandadas pelo general Pierre (Pedro) Labatut (1776-1849), um oficial francês com experiência nas guerras napoleônicas e nas de independência da Colômbia. Ele chegou ao Recôncavo no dia 28 de outubro, com tropas do Rio de Janeiro, de Pernambuco e de Alagoas, e logo intimou Madeira de Melo a cumprir a ordem imperial. Sentindo-se fortalecido pela chegada de uma frota portuguesa que lhe trouxe mais dois batalhões e um corpo de Artilharia no dia 31, Madeira anunciou sua intenção de sufocar o que considerava uma sedição.
Na madrugada do dia 8 de novembro, 1.900 soldados portugueses avançaram pela Estrada das Boiadas rumo a Pirajá, e 550 marinheiros e soldados desembarcaram nas praias de Icaranha e Plataforma para atacar as posições adversárias pelo flanco. O ataque foi logo percebido e precipitou o início da batalha, que durou quase seis horas. Estima-se que o número de defensores brasileiros tenha sido algo entre 1.700 e 2.000 homens. Era uma mistura de milicianos negros e pardos de Salvador, tropas regulares, milicianos do Recôncavo e auxiliares como índios flecheiros. Os postos avançados brasileiros recuaram diante do primeiro ataque, e os portugueses se lançaram sobre o acampamento brasileiro. Quando percebeu a iminência do perigo, o major pernambucano José de Barros Falcão de Lacerda (1775-1851), que comandava os brasileiros, mandou tocar a retirada – havia diferentes toques para ordenar a movimentação das tropas. Mas, segundo o alferes Ladislau dos Santos Titara (1801-1861), o corneteiro Luís Lopes, natural de Portugal, deu o sinal de “avançar Cavalaria à degola”. O toque errado amedrontou os portugueses, que fugiram em disparada e foram perseguidos até as portas da cidade. Foi nesse momento que chegou a pequena Cavalaria brasileira, comandada pelo major Pedro Ribeiro de Araújo. Para ele, “aquele som foi o sopro do furacão”, e acabou incitando seus homens: “Partimos como loucos furiosos; todo o Exército obedeceu ao mesmo impulso”.
Até hoje o número de baixas é questionado. Labatut, que estava em seu quartel-general, relatou que houve 200 mortos portugueses, mas, em outro ofício, mencionou “200 feridos e grande quantidade de mortos” entre os inimigos. Madeira admitiu apenas 64 baixas, e não há dados sobre o número de patriotas mortos. Pelos padrões das batalhas napoleônicas, nas quais morreram dezenas de milhares de homens, a de Pirajá mal passava de uma escaramuça.
O significado moral do embate foi enorme. O número de adesões à causa patriota, por ter o Exército brasileiro improvisado derrotado os soldados treinados da metrópole, aumentou consideravelmente. Ainda haveria muitos combates, mas o fato de Madeira não ter conseguido furar o cerco implicava sua derrota inevitável.
No dia 2 de julho de 1823, os patriotas ocuparam a cidade depois da evacuação portuguesa, e a importância da batalha de Pirajá foi logo reconhecida. Uma comissão de oficiais e o futuro visconde de Pirajá brigaram para ver quem comandaria os festejos do seu primeiro aniversário. O alferes Titara cantou as proezas das forças patriotas no seu poema épico “Paraguassú” (1835-37). Um jornal baiano, em 1835,conclamou os “Amigos da Pátria, reunidos no Campo de Pirajá”, para celebrar “o aniversário da glória deste dia ganhada pelas armas Brasileiras”. Dois anos depois, o cônsul britânico qualificou o dia 8 de novembro como “um grande feriado político” nos arredores da cidade.
O costume de celebrar o aniversário da vitória foi desaparecendo. Um periódico de 1850 lamentou que o dia passasse despercebido e que o corneteiro Lopes tivesse falecido na miséria. A comemoração da batalha foi aos poucos incorporada aos festejos do Dois de Julho. Em 1853, os restos mortais de Labatut foram depositados na capela de São Bartolomeu de Pirajá, e, a partir desse ano, realizava-se uma romaria anual ao lugar, tradição que perdurou até a década de 1890. D. Pedro II chegou a visitar a igreja e o campo da batalha em 1859, ciceroneado pelo barão de Cajaíba – Alexandre Gomes de Argolo Ferrão (1800-1870) –, que havia sido tenente durante o embate e, exagerando, contou-lhe que 300 brasileiros haviam derrotado 4.000 portugueses. Pedro julgou-o “vaidoso de seus serviços”.
A batalha de Pirajá continuou sendo lembrada no início do século XX. Por iniciativa da Liga Baiana de Educação Cívica, foi inaugurado, em 1914, o Panteão de Labatut em Pirajá, um pequeno templo que abriga seus restos mortais. Hoje em dia, quando atletas baianos saem anualmente de Cachoeira para levar o Fogo Simbólico do Dois de Julho para Pirajá e acender uma pira, eles rememoram “a união dos povos que lutaram pela independência da Bahia”.
A tela "Entrada do Exército pacificador em Salvador", de Presciliano Silva, lembra a definitiva adesão da  Bahia  à Independência (2 de julho de 1823). Mas, sem Pirajá, tudo teria sido muito mais difícil.

Fonte: Revista de História da Biblioteca Nacional
Por: Hendrik Kraay é professor da Universidade de Calgary, no Canadá, e autor de Race, State, and Armed Forces in Independence-Era Brazil: Bahia, 1790s-1840s (Stanford University Press, 2001).

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